A primeira vez que assisti Monty Python, em especial o filme O Cálice Sagrado, tive contato com Terry Gillian, um dos membros da trupe que não costumava chamar tanta atenção quanto Graham Chapman, John Cleese, Eric Idle, Terry Jones e Michael Palin. Terry não contribuía tanto com sua atuação quanto contribuía com o roteiro e, acima de tudo, com sua arte. Nada se compara com sua arte. Seu estilo marcante de colagem misturava elementos bizarros por meio de sobreposição visual com o grotesco e o absurdo, criando ilustrações surrealistas, irreverentes e satíricas.
Como animador, empregava também um estilo de animação recortadas, conhecida como cut-out Animation, em que figuras, objetos e obras de arte clássicas são manipuladas de forma cômica e distorcida, exalando seu caráter artesanal. Ao usar essa técnica, Gillian combinava a influência de obras renascentistas e arte barroca, reforçando o tom satírico.
Além do surrealismo influenciado por Salvador Dali, o estilo se caracterizava por seu dadaísmo e pop art, com todo o absurdo, ironia e saturação presentes nesses estilos, resultando em uma animação excêntrica e provocativa.
FITA VERMELHA, CAOS NO INFERNO
Eu conheci e pude me dar ao prazer de jogar o jogo RedTape, jogo brasileiro desenvolvido pela Pollaris Studio, onde somos uma espécie de estagiário no Inferno. O caos está instaurado nas premissas e precisamos fazer sentido do que está acontecendo. Foi um dos jogos sorteados no clube do jogo Peak da Semana do Game Design Hub, da qual faço parte como moderador.
Ao iniciar RedTape, a primeira coisa que notei que me saltou aos olhos foi a proximidade da direção de arte escolhida com o estilo icônico de Gillian. Não sei dizer se o artista Francisco Lucas, da Pollaris Studio, de alguma forma se inspirou nas artes de Monty Python para elaborar os personagens do jogo, mas eu sei que me diverti imensamente com a direção de arte logo de cara.
A direção de colagens irreverentes incorporando elementos gráficos como half-tone e cores saturadas dos personagens 2D em contraste com um ambiente em 3D modelado com texturas que seguem a mesma linha me transportou instantaneamente para a comédia que conheci nos filmes e no próprio seriado do Monty Python, o Flying Circus. Mas não de uma forma que pareça um arremedo ou plágio, pelo contrário, tudo soa único e cheio de personalidade própria.
O design de jogo de RedTape também é por sua vez curioso e me peguei refletindo sobre ele em conversa com amigos do GDH. Sob a assinatura de Nathan Gabriel, o design suscita em mim um certo debate sobre as fronteiras de gênero que assolaram discussões em alguns dos meios que frequentei há mais de 10 anos acerca do subgênero walking simulator.
adventure ou walking simulator?
Em revistas e sites especializados, fóruns de entusiastas, vídeos-ensaio, redes sociais, palestras e rodas de conversa com colegas designers discutiu-se bastante por volta de 2013 como aquele, até então, novíssimo gênero transitava entre as fronteiras de jogo e não-jogo, levantando hipóteses sobre a existência de uma classe de software que melhor definisse a experiência.
Esses debates, excluindo os argumentos fascistóides, questionavam bastante a real utilidade das classificações e definições de gênero e subgênero, bem como a própria noção do que consideramos jogo aos olhos do design. Eu confesso que já tive inúmeros monólogos internos sobre o assunto, e hoje adoto uma teoria maximalista de design que aprendi somando a visão de designers ocidentais e orientais. Mas voltemos à nossa obra em análise.
O meu olhar de designer é claro em interpretar RedTape como um bom e velho adventure. Apesar de não adotar uma perspectiva de terceira pessoa e interação point’n’click, toda a progressão narrativa se desenrola com a resolução de pequenas tarefas e quebra-cabeças que seguem a lógica de eventos de um adventure clássico, ainda que em visão de primeira pessoa.
Não é pretensão minha definir com todas as letras o gênero de RedTape, muito menos debater se ele é ou não é um walking simulator, com toda e qualquer carga semântica que esse título de gênero possa vir a representar. Mas acho justo oferecer de forma direta e honesta minha perspectiva, minha leitura.
Não me entendam mal, eu sou um ávido fã de adventures. Cresci jogando clássicos da LucasArt e Sierra em sua era de ouro nos anos 90, e tenho um profundo respeito e admiração a quem ainda desenvolve jogos nos estilos mais tradicionais. Enxergar como um adventure é muito mais um reconhecimento de virtudes do que qualquer outra coisa.
a cômica divina comédia
RedTape consegue mixar muito bem a movimentação da perspectiva em primeira pessoa, fazendo uso de seus recursos em alguns momentos-chave, com a inventividade e o bom humor nos diálogos e tarefas pitorescas que propõe ao jogador. Essa mistura produz todos os elementos essenciais que compõem um bom adventure ocidental.
O roteiro por sua vez faz uso dessas tarefas de forma brilhante na perspectiva ocidental. Com uma premissa de comédia divina (ou seria divina comédia?) a proposta envolve a queda de um anjo desmemoriado ao inferno. Inconformado com seu destino, não há alternativa para descobrir o que houve exceto se adaptar à nova realidade e dançar conforme a música. Como se diz...já que estou no inferno...(mas que coisa, cadê o Capeta?)
Sem deixar a peteca cair, a direção de áudio também traz sua contribuição marcante e essencial, com vozes hilárias para os personagens habitantes do inferno e sons vivazes e igualmente cômicos para as inúmeras situações.
O mistério que ronda o Inferno vai incentivando o jogador a avançar de forma perene, algo característico de jogos com foco narrativo como se era de esperar. Mas a comédia absurda do roteiro, diálogos e tarefas a cumprir sempre mantém o tom irreverente e satírico, e não deixa jamais o tom da narrativa tomar um rumo mais pesado ou algo que fuja de sua proposta. É um aspecto que se estende do começo ao fim e que não deixa a essência do jogo se perder.
Acima de qualquer coisa, RedTape transpira uma deliciosa coerência entre sua temática e estética profana, enquanto emprega os mesmos elementos que a arte de Gillian usa para criar comédia e provocação. A adoção proposital dessa linha de direção é por si só digna de elogio pela personalidade patente, ainda mais em tempos tão estéreis de produção de jogos, mas também em virtude de uma crescente afetação reacionária religiosa por parte do público mais jovem.
É nesse ambiente que RedTape se permite ser ousado, audacioso, impertinente, se tornando nitidamente uma obra que transcende o mero produto da indústria criativa. Uma verdadeira obra de arte, se quer minha brutal e visceral opinião.
Red Tape está disponível na Steam para PC. A grafia do jogo foi propositalmente alternada entre junto e separado porque as artes e a instalação do jogo exibem "RedTape", mas a entrada na loja da plataforma está como "Red Tape". Se é proposital ou não, aproveitei para transformar em um aspecto meta-textual.
Um prólogo do jogo que foi criado como entrada para o Ludum Dare e posteriormente finalizado se encontra no itch.io em: https://chicogames.itch.io/redtape
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