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O Psychounauts de 2025: South of Midnight - Análise


Texto em vídeo:



A cultura norte-americana foi e ainda é, majoritariamente, uma cultura branca fabricada para vender. Seja por meio do cinema, da música ou dos livros, a cultura exportada por uma globalização imperialista é, em sua maioria, branca. Se até mesmo no Brasil temos dificuldade de lutar contra esse imperialismo cultural, quem dirá os povos racializados nos EUA, cuja cultura foi oprimida ou raptada. A situação só piora quando falamos do Sul, comumente retratado como a cultura redneck country style.


Quebrando esse estereótipo, South of Midnight traz a cultura ostracizada em forma de folclores infantis com uma ingenuidade doce, mas também com um amargo pesar que se associa à vida de minorias nos EUA do século XIX, no sul dos Estados Unidos. O coração de South of Midnight é fluido, belo e muito, mas muito vocal.

Uma pacata cidade histórica da Bahia
Cidade de Nazaré das Farinhas - Salvador-BA. reprodução Reminiscências

OK, eu vou te contar uma história que eu ouvia. Aconteceu lá na roça do Mocambo, no meio do mato, a 40 minutos de Nazaré das Farinhas, que fica a três horas de Salvador – Bahia. É de lá que parte da minha família vem e onde passei muitas das minhas férias e feriados.


Certa vez, um homem chegou assustado na casa da minha avó. Na mão dele, tinha um facão completamente ensanguentado.

Depois de se acalmar, ele disse que voltava da caça. Na subida da colina para casa, ouviu um barulho vindo da copa da jaqueira. Achando que era só uma pico-de-jaca (serpente fatal muito comum na região), preparou o facão, continuou e passou pela árvore.


Para a surpresa dele, não era uma mera serpente. Cai da copa um peru de uns dois metros, gritando, com as asas abertas. Ele imediatamente acerta as asas do peru com o facão e sai correndo para a casa mais próxima.


No dia seguinte, no ponto de condução que levava para a cidade, logo cedo, um homem que morava perto aparece com o braço completamente enfaixado. Desde então, acreditava-se que aquele homem era um lobisomem — ou melhor, um peruhomem, ou homem-peru, sei lá.


Eu conhecia esse homem e morria de medo dele. Na verdade, todas as crianças morriam de medo — e os adultos também. Por conta disso, evitávamos ir ao riacho à noite (onde o pé de jaca ficava), e também nunca brincávamos perto da casa do homem-peru. Não preciso dizer que se tratava de uma pessoa problemática na região.


É uma história tão besta que só poderia acontecer mesmo em uma comunidade tão distante. Mas ela é também muito especial. Imagine a minha surpresa quando o jogo me mostra os Rougarous — homens que se transformam em animais diferentes e, entre eles, corujas gigantes.


Uma personagem está prestes a lutar contra uma coruja gigante
Rougarou - Compulsion games

O fato de estarmos a 40 minutos de qualquer centro médico traz um certo desespero que suspende a descrença quase de forma natural. O mesmo acontecia com as histórias do Lobato, na Santa Luzia (bairro suburbano de Salvador), onde a outra parte da minha família vive. Quanto mais longe íamos de Salvador, mais perto os contos ficavam — e mais íntimos passávamos a ficar deles.


O ponto é: folclores e lendas urbanas nascem de forma pessoal.


Apesar de se tornarem cultura, em comunidades mais isoladas do centro urbano, elas são inicialmente boatos, histórias que aconteceram com alguém. Em muitos casos, histórias tristes — como doenças mal interpretadas ou pessoas perigosas sendo vistas como lobisomem, ou homem-peru, haha.


É essa a abordagem que South of Midnight traz para o folclore do sul dos EUA. Eventualmente, chegamos à mitologia — como Kratos lutando com cada um dos deuses do Olimpo. Mas antes disso, encontramos pessoas. Cada história folclórica desse jogo traz consigo uma narrativa forte, que me emocionou em vários momentos, pois são muito humanas antes de se tornarem fantásticas.


O Design como Personagem

Seguimos a história de Hazel, uma mulher negra filha de uma assistente social negra viúva do filho de uma oligarca burguesa branca. A avó e a mãe de Hazel não se dão bem, como já podemos imaginar.


De cara, o jogo já apresenta seus temas: o quão complicado é para uma mulher preta do Mississippi ser neta da família rica, dona da política e das fazendas da região? A metáfora desse jogo está justamente nos contos folclóricos que representam conflitos de natureza análoga aos de Hazel.


Afinal, ela também nunca compreendeu o conflito entre sua mãe e sua avó — e mal sabia que esse conflito estava para além do mundo real. Quando sua mãe é levada por uma enchente, Hazel embarca em uma jornada para o interior do interior, aproximando-se não apenas dos folclores a um nível pessoal, mas também de suas raízes e herança.


Cada mundo desse jogo traduz entidades em vivências dolorosas, em ambientações. Se você me conhece, sabe o quanto eu amo Psychonauts e seu surrealismo que reflete a mente dos personagens. Em South of Midnight, temos essa mesma sensação. Na verdade, por amar tanto Psychonauts, esse jogo chamou muito minha atenção.


Usar plataforma 3D e um combate simples, mas eficaz, para ajudar entidades folclóricas a lidar com traumas do passado é muito Psychonauts-like, e esse jogo honra a jornada pessoal da personagem principal, enquanto enaltece esse surrealismo realista de seu ambiente. Cada mundo reflete seus traumas — e cada mundo é lindo e muito singular. O visual é ainda mais ressaltado quando começamos a ouvir o jogo.


O game design desse jogo é muito vocal. Não apenas se apresenta como uma entidade dentro do jogo — uma forma razoável de tornar faróis de design, progressão e tutoriais mais diegéticos (naturais ao mundo do jogo) — mas também o próprio audio design é um personagem à parte.


Um exemplo de como o game design de de South of Midnight é um personagem a ser lido: no movimento de plataforma 3D, cada movimento que você faz solta um som em coro que, junto aos movimentos fluidos da Hazel, basta seguir as linhas azuis (que, na cultura, é dito que as entidades negativas evitam — sendo um guia seguro para nós), e formamos seções de plataforma muito mais significativas e com personalidade.


Junto à música que já está tocando, não precisa de muito para entender como esse jogo tem muito coração.


Marcações azuladas guiam Hazel em seu parkour por tecidos de colcha
Marcações azuladas guiam Hazel em seu parkour por tecidos de colcha - reprodução própria

Se existisse um jogo musical, eu diria que é este aqui. Cada momento é enfatizado com uma trilha sonora que transforma cantigas infantis sobre essas entidades em épicos de jazz, blues, soul e até alguns country, que acompanham os movimentos de Hazel e todos os traumas que permeiam esses seres.


De momentos tristes a momentos de tensão pura, a música é absurda — e compõe a voz desse jogo, que recomendo muito ser ouvida com muito cuidado.


Desde a dublagem excelente à narração em conto infantil, quanto mais jogamos, sentimos que estamos vivendo uma aventura de Salvador ao Mocambo a pé... de forma metafísica, mágica — e muito mais divertida do que realmente seria. Claro, não esperem achar bagres gigantes falantes na ilha de Itaparica.


E quando a gente já está longe demais da cidade, nos deparamos com uma experiência misticamente caipira. Esse jogo é como ser criança e ver uma roça cheia de encanto e criaturas mágicas, mas que na medida em que crescemos, enxergamos suas cicatrizes e mágoas históricas — essas, que esse jogo faz questão de mencionar.



Hazel e as suas raízes
Um fanstasma com roupas de matrizes africanas chamada Mahalia fala: Vamos, por aqui
Uma visão da tecelã Mahalia guiando pessoas escravizadas para um lugar seguro.- Reprodução própria

Hazel Flood é uma personagem muito carismática, e o subtexto desse jogo está muito presente na reação dela ao mundo. Desde a forma como ela se veste, à interação com personagens, Hazel se vê permeando lados de sua família: uma herança da oligarquia branca e uma luta das mulheres pretas escravizadas pelos mesmos homens brancos de quem ela herdou — ou por um sistema que até hoje as oprime.


Hazel entra na luta por sua mãe, mas descobre que existe uma luta muito maior. E o jogo não faz questão de esconder — apesar de não ser abertamente afrontoso (coisa que eu tenho certeza que seria, se não fosse dirigido por um homem branco que cresceu no Mississippi).


Veja, é meio irônico que esse jogo seja feito em Montreal, mas não precisamos de muito para ver como ele foi escrito e feito por pessoas que tiveram vivências cujas raízes estão nesse jogo.


Uma mulher negra com dreads  sorrindo
Donna Washignton Creditada em South of Midnight - Reprodução Donna Washington

Felizmente, parte da equipe é formada por mulheres pretas — mas uma pessoa que teve envolvimento no projeto, em específico, vale a pena ser mencionada: a escritora Donna Washington, que traz contos inspirados em mitologia afro-americana, indígena e latina.


Enquanto Hazel se depara com diferentes personagens e entidades, vemos histórias pesadas de pessoas pretas, mulheres, trabalhadoras, imigrantes — e até mesmo neurodivergentes.


E quanto mais nos distanciamos da realidade, mitologias mais distantes do urbano começam a aparecer, como do vodu (o Barão de Samedi) e até mesmo referências a entidades iorubás como Iemanjá e Oxum. Como soteropolitano, fiquei bem feliz.


Placas com caminhos para rio de Oxum e maré de Iemanjá
Placas com caminhos para rio de Oxum e maré de Iemanjá - Reprodução Própria

Aqui entra um ponto importante de Hazel como uma mulher preta: seus poderes a tornam uma lenda também — mas uma que foi muito importante para escravas e ex-escravas. O jogo cria o conto da Tecelã, uma mulher preta capaz de remendar e tecer as linhas e tecidos do mundo. Conhecemos a última tecelã: Mahalia, ela é a responsável por nos guiar pelos níveis e ajudar Hazel em sua jornada para ser a próxima Tecelã depois de mais de um século.


Assim, durante as fases, vamos colecionando partes dos traumas dos personagens para fazermos a trama, ou o padrão de costura deles — e remendá-los.

Isso é absurdamente significativo quando levamos em consideração a importância de tecer na cultura afro-americana.


Como forma de manter sua cultura, a colcha africana — costura de padrões — era a forma sutil de mulheres escravizadas passarem o legado para suas filhas que, eventualmente livres, passariam a conseguir independência ao vender costura como tecelãs, como a famosa Freedom Quilting Bee, uma cooperativa de mulheres negras do Alabama em 1966, durante a luta pelos direitos civis dos EUA.


Antes disso, porém, essas mesmas costuras seriam então utilizadas para passagem de mensagens secretas durante a Guerra Civil, para guiar pessoas escravizadas para fugir para o Norte, onde seriam livres — através da Underground Railroad, uma rota secreta organizada de evasão de escravizados para o Canadá.


No jogo, seguimos os passos da Mahalia, a antiga tecelã que guiava escravizados para um quilombo no pântano. Aqui então, Hazel entende que carrega agora um objetivo muito importante. Apesar de sua jornada começar sozinha, ela terminará em união.


Assim, será a luta de Hazel: contra os traumas que suas raízes passaram e como hoje, ainda, através de sua mãe como assistente social ajudando crianças em situações inumanas, ela pode ainda ser um guia, um farol — como Mahalia é para nós no seu design, e ela mesma foi para essas várias lendas folclóricas.


Eu amei estar nesse jogo — e gostaria que tivesse muito mais. No seu final, dá para perceber como muito foi cortado, mas o desfecho do jogo é corajoso e me deixou feliz de viver até o último capítulo dessa obra.


South of Midnight é estupidamente corajoso e encapsula perfeitamente a essência dos AA atuais: em uma indústria que deu asas a criações únicas, ambiciosas e de uma liberdade criativa que resulta em jogos brilhantes e imperfeitos — mas que jamais veriam a luz do dia na sociedade em que vivemos se não fosse por uma luta de representatividade de pessoas multiculturais dentro dos estúdios fazendo jogos.


E devo dizer: eu prefiro viver numa realidade em que South of Midnight exista.

Apesar de ter uma vertente mais abrasiva quanto aos movimentos políticos, ele não tem vergonha de contar histórias das pessoas que importam para o game. Apesar de ter na direção algumas pessoas brancas, não podemos excluir o trabalho deslumbrante de pessoas pretas, pardas, latinas e imigrantes que fizeram desse jogo algo único e inesquecível.


Não tenho dúvida de que a vivência do diretor David Sear no sul dos Estados Unidos foi importante, mas muito mais importante para essa obra é a vivência das pessoas que carregam muitos dos legados dos contos narrados nesse jogo.

Hazel Flood, uma garota negra com tranças olha para a luz
Hazel ao solucionar traumas do passado- Reprodução própria

South of Midnight é poderosíssimo em seu subtexto. Um dos pedaços de cultura mais significativos na grande mídia de jogos — principalmente dado o cenário atual dos EUA. É uma aula sobre uma cultura ostracizada pelo capitalismo norte-americano, que preferiu esconder culturas criadas pelos traumas que ele causou — e decidiu fabricar cultura que venda uma imagem de liberdade, uma forjada pela asfixia de pessoas negras, indígenas e latinas até hoje.


Vão tentar matar esse jogo. Fiquem atentos.


 
 
 

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