Recentemente um dos meus melhores amigos me convidou a ser o copiloto dele na saga Metal Gear Solid. Eu sorri.
Por muito tempo eu tive muita resistência pessoal com a série. Eu tentei jogar quando era adolescente e não consegui me envolver com o jogo por conta de suas mecânicas e controles complexos demais pra mim na época, e além disso a série já tinha expandido para quatro jogos principais e mais alguns spin-offs, o que me desmotivava a recomeçar a franquia do zero.
Na época que resolvi criar coragem para começá-la, outro grande amigo meu, um dos mais presentes desse momento da minha vida, havia recentemente publicado um texto estupendo sobre Metal Gear Solid 2 e ele se voluntariou para não só ser o meu copiloto, mas também pegar o controle e seguir em frente quando eu estivesse cansado da jogabilidade.
Guardo na memória com muito carinho essa que foi uma das melhores experiências da minha vida. Ter jogado toda a série partindo desse backseat inicial com amigos, especialmente no segundo título da franquia Solid, Sons of Liberty, me fez parar por esses dias para refletir sobre o nosso tempo, sobre o legado que herdamos e que deixamos, e todo um leque de questões filosóficas que enriquecem tremendamente não só a série MGS, como toda a mídia dos videogames.
Coincidentemente, nos últimos meses, eu tenho lido a passos lentos e com bastante atenção e curiosidade, fichando e pesquisando material extra, um livro escrito por Robert C. Allen chamado “História Econômica Global – Uma breve introdução”.
Dentre os capítulos iniciais, ao falar sobre a Revolução Industrial, Allen menciona o período como um caldeirão de fomento tecnológico, combinando a culminação de avanços anteriores com o intenso investimento estatal de países como a toda poderosa na época Inglaterra em pesquisa e desenvolvimento, buscando e obtendo êxito em encontrar novas tecnologias de utilização geral, abreviada pelo autor como TUG.
No livro as TUGs são definidas como tecnologias que provocam imensas transformações na sociedade tendo em vista a aplicação generalizada que elas permitem. O motor a vapor, e mais recentemente, os computadores, são exemplos desse tipo de tecnologia capaz de sacudir a realidade e modificar toda a economia, hábitos e prospectos de países no mundo inteiro.
Eu não sei vocês, mas é muito comum quando estou lendo um livro, ou um texto de não-ficção mais técnico, a minha mente começar a tergiversar sobre possíveis interconexões daquele assunto sendo tratado no texto com outros tantos de setores e campos de conhecimento diversos. Neste caso em específico, meus pensamentos foram pulando de associação em associação até parar em uma questão pitoresca: qual seria o papel dos jogos eletrônicos na História Mundial?
A pergunta soa um tanto pretensiosa e ousada, mas eu parei a leitura para puxar um papel e sair escrevendo de forma livre palavras-chave e conceitos que pudessem estar interconectados a fim de estabelecer uma cadeia lógica capaz de responder tal questionamento.
Economia é um termo que se refere ao campo teórico da ciência social que trata de analisar a produção, distribuição e consumo de bens e serviços, abrangendo diversos setores da sociedade, envolvendo a esfera pública e privada como áreas de atuação. Impostos, energia, transportes, matéria-prima, pesquisa e desenvolvimento, indústria e o próprio comércio doméstico e exterior estão todos contidos dentro do campo da Economia.
Mas quando falamos de Economia, também nos referimos ao estado resultante da soma das condições micro e macro de uma sociedade. Essas condições afetam e são afetadas retroativamente pelas condições sociopolíticas de cada país.
A estabilidade da moeda, os acordos comerciais, guerras em curso internas e externas, salários, educação, participação popular, a forma de governo e a segurança jurídica, sem mencionar a própria cultura, são todos fatores que influenciam e são influenciadas pela Economia.
No que tange a cultura, todo e qualquer impacto socioeconômico produz algo que mexe nas relações sociais internas e externas da sociedade, alterando a produtividade das pessoas, criando e sustentando indústrias e, não surpreendentemente, refletindo nas expressões artísticas.
Em momento anterior, escrevendo sobre os adventures japoneses, comentei como os jogos eletrônicos, frutos da indústria criativa, são por si só um produto cultural e assim, plenamente capazes de carregar um conteúdo imaterial ao qual damos, dentre tantos outros, o nome de arte.
Mas os jogos são filhos de duas progenitoras. Se a indústria criativa é uma, a própria tecnologia de utilização geral, no caso a computação, é a outra. O jogos reúnem em sua composição, se formos justos, todas as outras formas de arte: texto, imagem, som, movimento...os elementos que compõem tecnicamente a literatura, a escultura, a arquitetura, a dança, a música, a pintura, o cinema e os quadrinhos.
Não é injusto dizer que os videogames, respeitando suas limitações sensoriais como o olfato e o tato, contêm os elementos capazes de carregar a estética, a intenção, o comentário social, o registro histórico e as provocações que toda forma de arte carrega, exploráveis dentro de um ambiente virtual e sem deixar de contribuir com sua própria adição na forma da interatividade.
Às vezes nos esquecemos também como a mídia dos videogames é recente, meros 40-50 anos de vida, sendo contemporânea da própria TUG que a criou. Não podemos esquecer que a computação por sua própria natureza é aplicada a tudo ao nosso entorno. Isso provoca transformações não só na mídia dos videogames o tempo todo com sua constante evolução, mas também em todas as outras formas de arte e, claro, todos os outros aspectos socioeconômicos já citados.
A arte, a política, o jornalismo, a comunicação, o trabalho, tudo passa por revoluções provocadas por uma única tecnologia. E a História vem nos mostrando que o impacto humanitário que a computação provocou é potencialmente um dos maiores de todos os tempos, rivalizando com a navegação, as técnicas de agronomia e cultivo, a fusão do metal, a telefonia e o já citado motor a vapor. Isso se não for a maior de todas, já que é ela que nos permite não só alterar o planeta em escalas nunca antes vistas, como também explorar o espaço sideral.
Não admira que nós, como seres humanos, tenhamos tanta dificuldade em processar essa informação. Estamos no epicentro histórico de tudo isso, e nos embasbacando com a rápida transformação que tudo em nossa volta vem sofrendo nas últimas décadas, auxiliados (mentalmente) de certa forma com a velocidade mais lenta com que as novas tecnologias são implementadas e popularizadas.
Estamos literalmente vivendo esse momento histórico tão impactante na humanidade e no planeta e é desconcertante como o burnout e a apatia que o sistema de produção vigente nos proporciona na forma de tanto trabalho. Talvez o capitalismo seja um grande agente na ocultação desse caráter assustador e fabuloso que adjetiva nosso zeitgeist. Aqui e acolá me pergunto se isso é positivo ou negativo. A ocultação, claro, não o sistema.
É nesses momentos que me fascino quando me deparo com obras como MGS2 - Sons of Liberty e o filme Gattaca (1997), dentre tantos outros de ficção científica, em especial os distópicos, que se dispõem a imaginar um futuro onde diversos desses avanços que estamos vivenciando levam a consequências desastrosas ou no mínimo questionáveis como o controle da sociedade por grupos plutocráticos.
A velocidade de transformações que acompanhamos é surreal, cumpre ressaltar. As novas gerações entram em choque o tempo todo com as mais antigas, de formas cada vez mais gritantes, e olha que a diferença geracional em termos de tempo nem é tão absurda quando em outras épocas.
Esses choques se manifestam na distinção grosseira da maneira com que pensam em si mesmos, quais sonhos e desejos desejam atender, e quais perspectivas de futuro e hábitos possuem, além da relação interpessoal e com o trabalho. Choques relacionados não só ao comportamento, mas também às ideologias e visões de mundo.
Imaginemos por quantos anos, quiçá séculos, o ser humano dependeu de cartas para se comunicar para que, em menos de 100 anos de inventado o telefone, inventássemos a internet, em seguida o e-mail, para logo depois em menos de 20 anos os suplantarmos em prol de mensageiros e celulares portáteis individuais.
Se quando olhamos para o micro, os avanços são incomensuráveis, do tipo pensar que há somente 30 anos era necessário ir até um posto de telefonia no interior do Ceará para fazer uma ligação para uma residência, e hoje basta usar um celular, no macro a coisa é ainda mais absurda.
Parece algo tão mundano e corriqueiro o tanto que nossas vidas são impactadas por uma só nova tecnologia, que não conseguimos perceber a dimensão que tudo isso tem em relação à História humana. Talvez um mero milímetro em uma linha temporal de 300 mil anos.
Sempre que qualquer obra ou experiência como Sons of Liberty nos faz parar o corre-corre cotidiano para admirar e temer esse desconhecido futuro que, há 50 anos vem sucessivamente desafiando nossa imaginação e a cada dia nos apresenta mais e mais questões importantíssimas, como o atual debate em cima de Inteligência Artificial generativa, paro para pensar sobre a loucura que é estarmos no olho desse furacão.
Nesse contexto se torna natural que a mídia dos videogames siga o curso de todas as outras mídias e evolua não só tecnologicamente, mas também amadureça como forma de arte. É até desejável que o faça para não permanecer como mera ferramenta de escapismo e alienação, ganhando ainda mais valor como produto cultural.
Se torna quase impossível não esperar que os jogos mexam com temas cada vez mais profundos e ricos, tratando de Política, Filosofia, Metalinguagem da arte, Sociologia, Psicologia, Direito, História e por que não, fechando o ciclo, Economia.
Vendo assim é curioso como sempre se diz que a vida é cíclica e todas as ciências se entrelaçam no fim das contas. Toda vez que lançamos esse olhar introspectivo conseguimos de alguma forma comprovar esse caráter e chegar nessa mesma conclusão.
Frutos da Tecnologia e da Cultura, agentes da Economia e veículo da Arte, a mídia que escolhi me dedicar nitidamente possui um papel importante dentro desse ecossistema gigantesco, essa engrenagem avassaladora que é a História Mundial.
E mais relevante e significativo de forma pessoal que o próprio momento atual e suas implicações talvez seja justamente com quem estamos dividindo essa vivência. Daí não tem como não sorrir quando você tem a oportunidade de participar de uma experiência maravilhosa na companhia das pessoas que você estima muito e compartilhar o impacto deste evento na vida delas.
Texto editado e revisado por Gabriel Morais de Oliveira (@GabrielHyliano)
Comentário do Editor: Obrigado pelo presente, Felipe Lee. É um prazer dividir esse momento com você.
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