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Foto do escritorMatheus Magno

Você tem medo de videogame marginal? — Artigo | Ensaio

Arte conceitual do jogo Children of the Sun
Reprodução: Devolver Digital

Em abril joguei Children of the Sun, jogo desenvolvido por René Rother e distribuído pela Devolver Digital e que provavelmente estará na minha lista de melhores do ano até o fim de 2024. Digo de antemão que esse texto não é exatamente uma crítica, caso queira algo do gênero recomendo fortemente o outro aqui da casa escrito pelo querido Breno Mancini, disponível aqui.


De toda forma, fui pego de surpresa por esse jogo, não só pelos seus visuais provocativos, temática e mecânicas, mas sobretudo pelas expressividade e engenhosidade com a qual ele manipula elementos básicos do que é um jogo para transmitir uma “sensação” bastante específica — repensando aspectos elementares do que é um videogame, como as mecânicas de movimentação, a câmera e o “combate” e estilizando-as ao máximo. Se o modelo clássico de produção Triple A apresenta um esgotamento na sua forma, vejo Children of the Sun como parte de uma tradição que se debruça sobre essa ruína e extrapola elementos da linguagem dos videogames.


Imagem do jogo Children of the Sun
Reprodução: Devolver Digital

No jogo controlamos uma personagem que munida de uma sniper com uma única bala deve eliminar todos os inimigos do cenário. A grande questão é que, além do básico de se mover, mirar e atirar, nós também temos controle da bala em sua trajetória após o tiro. A cada inimigo atingido, podemos reorientar a trajetória da bala e atirar novamente a partir dali. Com isso, o jogo passa a orientar-se como um quebra-cabeças, onde o centro da ação é a reatividade e estratégia do jogador de como cruzar o cenário com apenas uma bala e eliminar todos os inimigos.


Children of the Sun acaba, portanto, sendo um jogo extremamente maneirista (tema que pretendo abordar em um próximo texto): A bala é ao mesmo tempo projétil, personagem e câmera. Verbos como “andar” e “explorar” o mapa se dão no mesmíssimo ato da violência, do verbo “atirar”. Combina, assim, elementos de movimentação, combate e enquadramento da ação em um único ente conforme a progressão.


Porém há algo que me intrigou mais que mecânicas ou gameplay: uma postura marginal frente à linguagem dos videogames, e é isso que quero discutir aqui. Durante toda a minha jogatina me peguei pensando em como o jogo evocava para si uma certa expressividade sensível, muito latente e muito relacionada à toda uma tradição de contracultura nos videogames e (não tão inusitadamente) no cinema marginal brasileiro.


Sim, cinema brasileiro dos anos 60 e 70, isso irá fazer sentido, mas vamos por partes.


 

Como saímos de um jogo alemão e chegamos, então, ao cinema marginal no Brasil? As distâncias geográficas talvez não sejam tão longas se olharmos com atenção para algumas sensibilidades artísticas, tendências contraculturais e condições de produção e de formação de público que informam esses dois momentos distintos.


Falando de forma até bem pessoal, para mim existe uma experiência estética mais ou menos geral e identificável, um pouco difícil de explicar, mas fácil de perceber quando experienciamos jogos como um Children of the Sun, Felvidek ou Cruelty Squad, por exemplo. Uma tendência e sensibilidade artística comum que vejo atrelada a essas outras produções que se identificam (ou são identificadas pelo público) e reivindicam uma identidade mais ou menos contracultural. Essa experiência remonta não a um gênero de jogos, uma coesão temática ou um movimento cultural historicamente determinado e homogêneo, mas sim a uma postura estética frente ao desgaste da linguagem de videogames, que abarca não só o que chamei de maneirismo, mas também formas “marginais” de lidar com o dogma do “bom” game design e com os ideais de polidez.


Essa sensibilidade pode vir de uma complexa elaboração ou reflexão teórica sobre o estado dos videogames, sendo uma opção artística e política de ir contra o estado de coisas da indústria. Mas pode também ser tão intuitiva quanto a vontade de apenas criar algo novo, algo capaz de representar realidades sociais periféricas, não comportadas no cânone de videogames.


Porém, há um problema claro para mim: nos videogames, essas produções, como já dito, divergem em momento histórico, em contexto, em abordagem, em mecânica, cenas mais ou menos underground e localidades. Então como aproximar produções distintas? Como perceber essas influências a partir de um elemento comum? A chave para mim pareceu justamente a ideia de uma sensibilidade estética marginal/underground.


Susan Sontag argumenta no seu clássico texto “Notas sobre o Camp” que existe uma dificuldade inerente em se debruçar sobre o aspecto sensível de uma obra — “uma sensibilidade (ao se diferir de uma ideia) é uma das coisas mais difíceis de se falar [...].  Para designar uma sensibilidade, traçar seus contornos e contar sua história exige-se uma profunda afinidade modificada pela repulsa.”.


Pensando nessa dificuldade, vou tentar aqui demonstrar, mais do que explicar, o que talvez possa ser esta sensibilidade que chamei de “marginal” e o porquê acredito fazer sentido pensar os termos dessa postura estética. Por isso, analisar como esses jogos expressam uma compreensão do “marginal” é para mim (e para Sontag) um trabalho de identificar uma “consistência de sensibilidades”, e é essa consistência que informa um gosto específico.


Capa do podcast Something Rotten
Something Rotten, por Blake Haster e Jacob Geller

O que primeiro me fez pensar a possibilidade de vislumbrar essa sensibilidade estética marginal nos jogos foi a proposta do podcast estadunidense Something Rotten, de Jacob Geller e Blake Hester. A ideia do programa é explorar jogos que os apresentadores consideram “rotten games”, algo como jogos podres ou apodrecidos em português. Aqui também estamos falando, portanto, não de um gênero, mas de uma sensibilidade, de algo menos concreto do que uma ideia. O rotten se aproxima mais de uma postura estética, uma proposição de elementos que não se limita à forma ou ao conteúdo do jogo, mas se expande englobando preferências mais sensíveis e difíceis de qualificar, informadas mais pelo “gosto” e menos por uma racionalidade analítica sobre a obra. Por isso, a ideia parecia bastante sólida: pensar jogos através de uma conceituação mais ampla, de um conjunto mais ou menos consistente de escolhas artísticas que se comunicam com um gosto comum.


No entanto, a compreensão deles do que seria rotten parecia um pouco distante da nossa realidade brasileira e, em certa medida, distante do tipo de experiência que tive com Children of the Sun e obras afins. Portanto, o tal rotten game acabava se distanciado um pouco do que estava buscando entender.


Mas foi a partir daí que comecei, então, a buscar outras referências artísticas que pudessem me ajudar a nomear essa pulga atrás da orelha que já estava me incomodando. E foi assim acabei encontrando a melhor elaboração “teórica” sobre isso não nos videogames, mas no cinema brasileiro dos anos 1960-1970.


 

O Terceiro Mundo vai explodir!


Imagem do filme Bandido da Luz Vermelha
Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla

O chamado Cinema Marginal congregou cineastas que produziram uma resposta artística radical ao Cinema Novo por ver um esgotamento da proposta política dele e o considerar um cinema muito academicista. Não à toa, o Cinema Marginal divide espaço de exibição, artistas, diretores e profissionais com a Boca do Lixo, em São Paulo, onde são produzidas e exibidas pornochanchadas, filmes de gênero e filmes pulp como os de José Mojica Marins (Zé do Caixão).


O marginal era tanto uma continuidade como uma ruptura com Cinema Novo, representado por Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos. Ambos se propunham a realizar uma estética terceiro-mundista, porém o Cinema Marginal buscava não só representar, como incorporar a ideia de subdesenvolvimento ao próprio fazer cinema, radicalizando ainda mais a relação do grande público com arte e a linguagem cinematográfica.


Com a ditadura empresarial militar no Brasil, a repressão e a censura, os cineastas marginais buscavam a incorporação de elementos da contracultura urbana do Rio de Janeiro e São Paulo, da cultura popular, religiões de matriz africana, uso de temas considerados tabus para época, representações de personagens LGBTQIA+, a influência da tropicália e, sobretudo, o uso de poucos recursos financeiros e técnicas precárias de gravação (câmeras de 16mm e, por vezes, de 8mm, conhecidas como “super 8”). Essa postura estética foi a responsável por maturar uma sensibilidade artística comum e tendências entre os cineastas marginais.


Enquanto isso, por parte do público, sobretudo os filmes da Boca do Lixo ganhavam cada vez mais popularidade. As maiores produções cinematográficas do período uniam elementos de pornochanchadas, filmes de terror, noir e “exploitation”. Clássicos como Bandido da Luz Vermelha, A Meia Noite Levarei Sua Alma e a Dama da Lotação foram grandes sucessos de público, sobretudo este último sendo uma das maiores bilheterias da história do cinema nacional.


Imagem do personagem Zé do Caixão
José Mojica Marins como Zé do Caixão

Portanto, como esse termo já possui uma forte ligação com arte no Brasil, muito diretamente com o Cinema Marginal e o Cinema da Boca do Lixo, pensar de forma mais ampla uma sensibilidade marginal, não parecia para mim um grande salto lógico. Aliado a isso, uma ideia de Rogério Sganzerla, um dos principais nomes desse momento marginal do cinema brasileiro foi bastante provocativa para mim:

Continuo realizando um cinema subdesenvolvido por condição e vocação, bárbaro e nosso, anticulturaltsta, buscando aquilo que o povo brasileiro espera de nós desde o tempo da chanchada: fazer do cinema brasileiro o pior cinema do mundo! Ah, como isso seria maravilhoso e sensato!
Rogério Sganzerla com uma câmera gravando uma cena
Rogério Sganzerla

Aí estava a postura estética que tentava observar ou enxergar olhando para esses jogos. Ela estava menos em uma conceituação teórica e mais em uma sensibilidade compartilhada. Essa sensibilidade que poderia ser vista tanto no gosto criado pelo público, quanto pelas próprias condições de desenvolvimento dos jogos marginais.


Primeiramente, do ponto de vista do gosto, esse que é construído fora do circuito de grandes orçamentos milionários, marcado pela precariedade de recursos para disponíveis jogar. A falta de acesso aos consoles de última geração, as gambiarras dos jogos de computador e as culturas alternativas de internet. Esse gosto é produto da alienação do jeito formal de se jogar grandes lançamentos, processo que só se radicaliza com videogames cada vez mais caros, tornando-se produtos de luxo.


Porém, do ponto de vista da e do artista, também é marcado por quem faz esses jogos com a falta de recursos para o desenvolvimento, pela arte de produzir modificações em títulos antigos, de hackear, crackear e piratear. É o processo pelo qual, não conseguindo emular os parâmetros de qualidade de um Triple A, parafraseando outra ideia Sganzerla no cinema e aplicando ao videogame, busca-se avacalhar!


O termo marginal surge para mim, então, como uma luva.


 

pARA ONDE VAI O VIDEOGAME MARGINAL?


Children of the Sun, obviamente não é pioneiro nisso. Foi o apenas o gatilho para mim, o jogo que me botou nesse movimento de pensar esses aspectos. Acho interessante pensarmos um pouco sobre os precedentes que nos trazem até aqui.


O contracultural ou o avant-garde sempre esteve presente na cultura de videogames. Sobretudo após a explosão da pirataria nos anos 90 e 2000, como é o caso de LSD: Dream Emulator ou FES. Esses elementos iniciais de experimentação vão ser importantes, pois são eles que, em parte, vão informar uma sensibilidade marginalizada sobre jogos, além de serem muito proeminentes nessa geração, inclusive em títulos grandíssimo orçamento para época, como é o caso de Metal Gear Solid.


Imagem do jogo LSD: Dream Emulator
Reprodução: Asmik Ace

Aliado a isso, a necessidade de revisitar jogos do PS1 e PS2 em função de serem mais baratos e acessíveis, torna-se cada vez mais um aspecto formativo de nossa relação com videogames, sobretudo, mas não exclusivamente, no Sul Global. A pirataria, os camelôs e a distribuição alternativa de jogos foi a responsável por criar “cânones” locais, pequenas bolhas de preferências e experiências compartilhadas que não eram mediadas pela relação com a grande indústria — ainda que muitos dos jogos desses círculos fossem Triple A ao seu tempo.


No exterior, sobretudo nos EUA, Europa  e Japão, ainda que com acesso facilitado a consoles e jogos da geração, já existia também um debate riquíssimo sobre essa abordagem que se torna característica de jogos contemporâneos. Os resultados mais diretos disso são vistos na recente cena de "micro indies", dos jogos de RPG Maker das últimas duas décadas, e algumas produções mais obscuras japonesas dos anos 90 e 2000 — como LSD: Dream Emulator e GARAGE: Bad Dream Adventure.


De uma forma ou de outra, a história dos videogames não é um processo linear apenas liderado pelas grandes corporações detentoras da tecnologia e meios de produção. Como afirma a crítica  Lana Polansky:

Existe uma história menos conhecida dos jogos em si. Com isso quero dizer um relato mais íntimo composto por uma longa herança de jogos deliberadamente preocupados com o artístico, o político e o pessoal. Para estes, o termo “artgame” é útil. Este termo refere-se a videogames que pretendem provocar ideias artísticas, mas que ainda assim são entendidos contextualmente como jogos. O “artgame” contrasta importantemente com a “game art”, que geralmente é produzida por artistas conceituais e visa tratar os jogos não como uma forma em si, mas como matéria-prima para novos trabalhos. A linha entre os dois, no entanto, pode ser e é confusa. Às vezes não está claro se uma determinada obra de arte digital se destina ou não a ser lida como um “jogo” ou como “arte conceitual baseada em jogos”, e eu diria que, à medida que jogos e arte convergem para insistir em uma distinção incontestável entre o dois é se envolver em pedantismo fútil.

Acrescentaria ainda que existe também uma outra narrativa sobre história dos jogos que mesmo não pertencentes às noções de pessoalidade, autoralidade e subjetividade artística dos artgames que Lana Polansky discute em seu texto, passam por apropriações e ressignificações pelo público. Essa ideia de recontextualizar um jogo, de fazer ele contar outras história além daquela que ele foi desenvolvido para ser, é parte fundamental do processo de relação que o Sul Global tem com videogames. Títulos que não necessariamente seriam artgames, que são oriundos dos grandes estúdios da indústria são reelaborados pelo público. Essa narrativa histórica de apropriações é também, junto à experimentação estética e contracultural de títulos mais obscuros, parte fundamental do que compõe essa sensibilidade marginal.


Imagem do jogo The King of Fighters 98'
Reprodução: SNK

Exemplos disso são a sobrevida de The King of Fighters na América Latina em detrimento da onipresença cultural de Street Fighter ao redor do mundo ou a identidade firmada com jogos como Metal Slug e, em uma escala mais global, o domínio de jogos de flash e suas experimentações em sites como Newgrounds. A cultura de jogos para grande parte do público dos anos 2000 foi, portanto, informada por um senso de “gambiarra”, de arqueologia de títulos para emulação, pela experiência de esbarrar com algo desconhecido em algum recanto da internet, ou de se conectar com uma obra através do que era vendido no camelô mais próximo. Essa percepção fragmentada, improvisada e que produz um certo estranhamento com o “original” é bastante importante e, em certa medida, informa parte da sensibilidade marginal que nos propomos a entender aqui. Isso porque a contracultura, em certa medida, advinha do “como” se jogava mais do “o que” se jogava. O “o que dava para jogar” era muito mais importante do que aquilo que efetivamente estava sendo lançado.


Por essa razão, acredito que possamos observar rapidamente alguns momentos dessa experiência de videogames.


Arte conceitual do jogo Azar de Pedro Menos da Menos Playstation
Reprodução: Menos Playstation

Dentro de uma linhagem de experimentações, vemos jogos que começam a elaborar formas de distribuição, desenvolvimento, estética e gameplay que existem à margem do “game design”, incorporando em si esses elementos contraditórios e material e financeiramente precários do que é produzir jogos de forma independente. Títulos como Anatomy (Kitty Horrorshow); Hylics 1 e 2 (Mason Lindroth); Everything is Going to be OK (Nathalie Lawhead); até títulos brasileiros como o excelente Matar Gente Rica de Skate (Daniel Dante); o maravilhoso Bruxólico (Amaweks) e um dos meus queridinhos de 2023 o I Did Not Buy This Ticket (Tiago Rech e Time Galleon).


Imagem do jogo Felvidek
Reprodução: Jozef Pavelka

Por outro lado, como sempre reivindica e defende o jornalista e grande  amigo, André Alcântara (responsável pelo excelente documentário Um Real a Hora), nos mobiles e na cultura de jogos brasileira temos também fortes expressões dessa sensibilidade marginal sobre jogos. Como dito, a forma singular através da qual nos relacionamos com videogames inclui não só fatores de ordem material, mas de natureza subjetiva e sensível. Isto é, considerando as experiências brasileiras, para além de acessarmos materialmente os jogos de modos distintos daqueles vistos como padrão pela indústria e pelos agentes de poder do Norte Global, vemos e interagimos com eles de modo particular. 


Arte conceitual do jogo Elite Motos 2
Reprodução: Souza Games

Exemplo prático disso é a influência de GTA: San Andreas, cuja popularidade e impacto cultural no Brasil são incomensuráveis, em jogos brasileiros para celular que representam, direta ou indiretamente, realidades locais nacionais. Não é preciso realizar uma análise minuciosa para enxergar isso em títulos como Rebaixados Elite Brasil, Elite Motos 2 e Elite Brasil Tuning.


São produções que, cada uma à sua maneira, materializam como muitos aqui jogavam (e jogam) San Andreas: menos foco na campanha de história e mais atenção à interação livre com o ambiente, veículos, personagens não jogáveis, itens e sistemas. Não se trata apenas da influência de San Andreas, que também é muito de ordem estética e temática, mas de como nos relacionamos com ele. 


A maioria desses jogos têm objetivos simples em comparação aos modos história tradicionais de GTA. A preocupação está na representação de aspectos das culturas e vivências nacionais, especialmente periféricas, expressando isso mecânica e visualmente. A concepção, execução e promoção desses jogos seguem uma lógica distinta daquela tradicional da indústria de videogames. É tudo nosso.


Versão modificada pirata de Dragon Ball Z Budokai Tenkaichi 4 para Playstation 2
Reprodução: JOGOS PIRATAS PS2 Marlon Chaves #MCR YouTube

Essa postura desafia convenções de game design, de estética. Desafia a acomodação de gostos que definem o que são “boas práticas” de design e de mercado. O jogo marginal carrega consigo, sobretudo, uma frontalidade e uma certa agressividade na experiência do jogador. Carrega em sua forma algo que simplesmente está além de uma ideia de bom ou ruim, apresentando novos parâmetros para essas experiências. São jogos que incorporam temática, estética e mecanicamente formas de fazer arte que são precárias por condição e vocação, que não estão preocupadas em ser um facilitador da “experiência de jogo”, mas produzir um atrito à moralidade, ao conforto do “gameplay”. São jogos feitos, em sua maioria, com menos recursos, maior noção de autoralidade e mais preocupados com o impacto de suas imagens e ideias do que propriamente com um profissionalismo do ato de desenvolver um videogame.


Enquanto o Camp, para Sontag, propõe a descoberta de que a "alta cultura" não detém um monopólio sobre o que é "refinado", o marginal pode mostrar que o domínio tecnológico sobre uma forma de jogar e fazer jogos não implica no monopólio sobre o que é “polidez” ou uma boa experiência. Elite Motors 2 pode soar muito mais interessante e libertador para quem o joga no Brasil do que o último “jogo de pai triste da Sony”.


Imagem do jogo Cruelty Squad
Reprodução: Consumer Softproducts

Essa descoberta é tão radical que não é incomum que o gamer profissional (o gamer padrão) confrontado com um jogo que carregue isso em algum nível negue, num primeiro momento, até o rótulo de videogame desta obra: “walking-sim não são jogos”; “mobile não é videogame”; etc. O apelo ao menosprezo da sensibilidade marginal ou underground dentro de círculos gamers evidencia a radicalidade da forma desses jogos. A paixão pela gambiarra e o pouco apreço com sagrado game design gera o estranhamento que marca a relação dessas obras com quem as joga.


É a partir disso que a possibilidade de pensar uma sensibilidade marginal surge. Marginal não só pelo fato de existir à margem da história oficial dos videogames, mas também por desenvolver uma preferência por uma postura específica frente a linguagem dos jogos. O que é marginal é testar os limites e, até certo ponto, ofender uma apreensão mais conservadora sobre o que videogames devem ser ou fazer. 


Olhar então para a diversidade de cena independente e underground dos games, assim como para produções periféricas ao circuito de grandes lançamentos pode ser muito revelador na apreensão dessa percepção de jogos marginais. Por isso, antes de prosseguir, faço um breve apanhado de recomendações a quem se interessar:



  • Elite Brasil Tuning, Elite Motos 2, GTA RP no Brasil, Mestres do Relo - Pipa, Vaquejada Gamer e todas as tentativas de criar um jogo à altura da cultura periférica e sertaneja do Brasil;


  • Todas as tentativas amadoras de modders do Playstation 2 de criar o "GTA Brasileiro" e todos os mods brasileiros de GTA San Andreas, especialmente os e Torcidas Organizadas;


  • Mods brasileiros de Dragon Ball Budokai e Budokai Tenkaichi de Playstation 2;



  • LSD: Dream Emulator e GARAGE: Bad Dream Adventure;


  • No More Heroes, The Silver Case, Killer 7 e todos os jogos de Suda51 e da Grasshopper;


  • Space Funeral, Hylics 1, Hylics 2 e todos os jogos de RPGMaker;


  • Problem Attic, de Liz Ryerson e todos indies que desafiam a linguagem de videogames como Anodyne 2, Quadrilateral Cowboy, Umurangi Generation e Cruelty Squad;


  • Especificamente Lost Izalith em Dark Souls e todas as partes quebradas de Dark Souls 2;


  • Todos os ragdolls que não foram programados propriamente;



  • Jogos que me geram repulsa e curiosidade mórbida na mesma intensidade como Iron Lung, Buckshot Roulette e Kane and Lynch 2: Dog Days;


  • Metal Gear Solid 2 (e apenas ele);


  • E todas as Creepypastas que envolvem cartuchos amaldiçoados.

Imagem do menu do jogo Children of the Sun
Reprodução: Devolver Digital

Children of the Sun foi um jogo importante para mim em 2024. Não só por me aproximar muito diretamente de Killer 7 (jogo que fiz um esforço enorme para não citar até a lista acima e irei falar muito brevemente sobre em um próximo texto), mas pela forma como ele me fez perceber esse aspecto riquíssimo que está além das formas rígidas de mecânicas, gênero ou gameplay, e olhar para um elemento mais abstrato, fundamental e até mais determinante do jogo eletrônico enquanto forma artística.


Assim, quero dizer que essa discussão não se encerra nesse texto. Mas aqui, o cerne da questão está na possibilidade de pensar uma sensibilidade marginal nos videogames — o jogo marginal como um exercício de investigação artística para além de uma mera curiosidade intelectual.


O videogame marginal é, portanto, parte também do processo de referendar e validar outras formas, outras sensibilidades, outros modos de perceber e nos engajar com jogos eletrônicos. Formas essas que estão além do videogame mainstream e industrial das grandes corporações. A partir do momento que essas obras se apresentam tão imperfeitas, tão ásperas e tão desconfortáveis, é o atrito gerado entre a epiderme do jogo e a nossa que rompe a força o nosso conforto. Nos desafia a perceber o videogame para além do paradigma da diversão, do escapismo e da alienação. É uma forma de elaborar o aspecto artesanal, humano e as rugosidades que compreendem o ato de construir um jogo.


O jogo marginal tem a potencialidade de conferir a quem joga e quem desenvolve uma agência artística sobre a obra, de modificá-la e ressignificá-la. Vida longa os videogames marginais!


Texto editado e revisado por Maya Souza (@ShinMayanese).



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