
“I think you have moved on... But you just didn’t realize it yet. Because you’re still here with me.” — "Eu acho que você já superou... mas ainda não sabe disso porque continua aqui comigo"
É até um pouco estranho estar escrevendo esse texto. Afterlove EP se tornou um Hollow Knight Silksong pessoal para mim, especialmente porque, depois de seu anúncio em dezembro de 2021, foi difícil não me tornar obcecado por ele. Aquela artezinha de Tumblr que eu amo numa visual novel... só isso já me vendeu a ideia como poucos conseguiriam. Acompanhei cada uma das notícias envolvendo seu lançamento, incluindo o fatídico dia em que seu diretor, Mohammad Fahmi Hasni, faleceu, deixando o projeto em um development hell sem precedentes. Foi até uma revelação curiosa ter visto que o jogo estava marcado para fevereiro a algumas semanas atrás. Pois bem, saibam que aqui estou eu escrevendo sobre um dos jogos que mais antecipei nos últimos anos.
De qualquer maneira, esse jogo é baseado quase que inteiramente nesse sentimento de luto distante. É até irônico que tenha sido cercado pela tragédia de Fahmi, tendo em vista que o jogo já era sobre lidar com luto. Afterlove EP conta a história de Rama, um jovem músico que, ao perder sua namorada, Cinta, desaparece por um ano inteiro da vida de seus amigos e parceiros de banda, Tasya, a baixista, e Adit, o baterista. Ele retorna apenas no começo do mês em que o jogo se desenvolve, pedindo para que a banda retomasse os ensaios. O único problema é que Rama continua ouvindo a voz de Cinta em sua cabeça e conversa com ela em voz alta, o que causa uma série de desencontros na história.
Muita da graça desse jogo se dá por conta de sua estética que, como citado anteriormente, parece estar intrinsecamente ligada a estilos populares de arte na internet. Em alguns momentos, eu me sentia jogando um template de Picrew, e isso não é uma ofensa, o jogo se beneficia de sua paleta fria e neutra, de seus traços finos e de suas composições mais simples, tanto em background quanto em personagens, que continuam sendo estilosos mesmo que com poucos detalhes.
Por vezes, a escrita parece um pouco truncada, com alguns momentos em que o jogo parece evoluir a história em passos muito abruptos. Os personagens saltam entre conclusões muito rápido e as cenas parecem precisar evoluir mais ou serem cortadas muito antes, mas não é o caso. Todavia, os diálogos ainda se sustentam, porque eles são muito sensíveis ao que o jogo está querendo dizer.

Afterlove EP é sobre luto e vai te apresentar várias perspectivas sobre seus vários tipos. Além do pesar por Cinta, talvez o luto mais importante para essa história seja pela Sigmund Feud, a banda dos personagens, que se recusa a morrer graças a insistência infantil de Rama em continuar. E, por falar em banda, a pior mecânica do jogo, na minha opinião, é o minigame de ritmo — talvez o elemento que mais escancara os sérios problemas de produção. As músicas terminam antes de você tocar as últimas notas, as melodias que você toca são pouco inspiradas — às vezes parece que eu estava tocando música de elevador — e existem pouquíssimas faixas para serem tocadas.
Nas minhas dez horas de jogo, devo ter tocado as mesmas duas ou três músicas dos ensaios umas dez vezes e não posso negar que estive cansado e com vontade de pular todos os minigames, mas essa possibilidade não existe Talvez, com mais tempo, poderíamos ter tido mais músicas, melodias mais interessantes e um maior esmero a esse loop, mas não é a única coisa que parece inacabada, porque o jogo tem sérios problemas de polimento: as conversas no celular quebravam com frequência e eu tinha que reiniciar o jogo, em alguns momentos perdendo um grande progresso.
Os diálogos com Cinta, a única personagem dublada no jogo inteiro, às vezes eram pulados sem que eu tivesse apertado comando nenhum e eu era obrigado a ler o log para saber o que ela disse. No modo de texto automático, a cadência do diálogo é rápida demais para você deixar lá, o que te força a passar os balões de fala manualmente e torna toda a experiência um esmagamento do espaço do teclado. Isso seria um problema em qualquer visual novel, até porque costumo usar do diálogo automático justamente para não ter que usar desse input e ler de maneira descompromissada. Dito isso, em algum momento eles se consertam, não precisa se preocupar.
intertextualidade, ou, uma oportunidade para eu falar de solanin...

Muito do que me fez apreciar esse jogo foi a intertextualidade com outras coisas que eu gosto. Em muitos momentos, Afterlove EP me fez localizar meus pensamentos em Possum Springs, acompanhando a história de Mae Borowski no meu queridinho indie Night in the Woods. Uma pessoa extremamente disfuncional que se afastou dos amigos por tempo demais para que isso seja ignorado retorna e se sente deslocada nesses ambientes, ao mesmo tempo em que parece se comunicar com seus antigos colegas para deixar tudo nos conformes. Eu poderia estar descrevendo tanto Rama quanto Mae nessa frase.
Ambos são extremamente irritantes em alguns momentos, mas representam, de certa forma, uma juventude perdida como nunca houve anteriormente, que não sabe exatamente como proceder na decadência do sistema capitalista em que, ao que parece, está fadada a morrer de fome, sem ar ou queimada, isso se fascistas não os encontrarem antes. Sim, talvez eu me identifique com esses personagens. Inclusive, me faz pensar muito no fator dating simulator desse jogo.
Existem três possibilidades, Regina, a ex de Adit que, sinceramente, é o encontro mais desconfortável de todo o jogo porque, por mais carismática que Regina seja, eles terminam logo no começo do mês em que a história se passa. Mira, uma poeta que também é um pouco desconfortável porque Rama passa boa parte dos eventos com ela relacionando-a a Cinta, mesmo que o jogo justifique bem esse relacionamento, em especial nos diálogos da própria Cinta durante as sessões com Mira; e Satria, a melhor opção, um garoto que trabalha na loja de discos que sua banda ensaia e de vez em quando faz apresentações públicas com seus amigos queer na praça da cidade.
Aliás, Satria é gay. É até engraçado estar fazendo o seu dating sim porque Rama demora muito tempo para entender que estava recebendo claras investidas do garoto. Em Night in the Woods, seu melhor amigo, Gregg, tem um namorado, Angus, e o assunto é tratado com naturalidade ao ponto de que homofobia simplesmente não é um elemento da história, em grande parte pelo jogo ser canadense, e o país, com todos os seus problemas, legalizou o casamento homoafetivo há vinte anos.

Em nenhum momento desse texto direi que o primo limpinho dos Estados Unidos é um exemplo de civilização em comparação com um país asiático, mas fato é que a Indonésia, onde se passa o jogo, ainda tem lugares em que pessoas LGBTQIA+ podem ser açoitadas e não existem leis de proteção a nossa comunidade. Isso transparece no jogo quando Satria e Rama entram em uma briga de rua com dois bullies.
Isso não apaga o fato de que o jogo faz um ótimo trabalho com essa relação e com a sua retratação de pessoas LGBTQIA+. Nossa comunidade é viva e diversa, mas está muito presente nessa subcultura de rock alternativo que a história acompanha. Eu sei disso porque estou nessa subcultura.
Isso sem falar que, em tempos de islamofobia no ocidente comendo solta, Afterlove EP também trata com naturalidade todos os NPCs do Islã que cruzam o caminho de Rama, como sua terapeuta. Sei lá, é legal ver personagens islâmicos que não sejam vilões ou simplesmente pessoas ruins. Já vejo essas pessoas sendo desumanizadas o suficiente na televisão.
Porém, além das comparações com Night in the Woods, talvez a obra que mais se relacionou com Afterlove EP foi meu mangá favorito. Solanin fala menos sobre luto e mais sobre a desilusão da atual geração com a vida que lhes foi deixada, da mesma maneira que o próprio Night in the Woods. Isso até que um evento no final do primeiro volume vira tudo de cabeça pra baixo e a história se torna sobre esse processo de partida de alguém e como nós que ficamos lidamos com isso.

Meiko, a protagonista de Solanin, parece não ver saída para essa tristeza da mesma maneira que Rama, mas tenta ao máximo honrar a memória da pessoa que perdeu, o que culmina numa apresentação final em que ela se entrega numa performance avassaladora, se sentindo empoderada quanto ao próprio luto, mesmo que por apenas um momento. Rama, por sua vez, se isola, se afunda na depressão e passa um ano longe de seus amigos; ao contrário de Meiko, que se aproxima ainda mais de seu grupo como forma de lidar com o que acabou de acontecer.
A idade é algo muito importante para esse sentimento de solidão também, com ambos tendo cerca de 25 anos, aquela famosa idade em que costumam surgir as crises existenciais como forma de se questionar e descobrir seu lugar no mundo. Meiko larga o emprego no começo da história e passa muito tempo tentando descobrir o que fazer da vida. Rama está vendo cada um dos seus amigos decidindo seus próximos e talvez definitivos passos, e descreve em uma sessão de terapia que está “preso no passado e pensando no futuro, sem tempo para o presente”.
Inclusive, são nesses momentos em que Kak Mus, o dono da cafeteria curiosamente chamada de Coffee and Conversation (para quem não sabe, Fahmi também dirigiu o primeiro Coffee Talk), se torna o meu personagem favorito dessa história. Kak Mus é, de certa forma, Rama. Um Rama crescido, que já passou pelos dilemas que o protagonista está vivendo agora. Ele tentou fazer música e falhou por conta de discussões com seus colegas, estando agora confinado numa cafeteria todos os dias da semana, contudo, mas sem ver exatamente um problema em sua atual situação.
Ele gosta do que faz, porque sente que tudo o que fez durante mais de trinta anos de vida o levaram até aquela posição, e ele gosta dela. Cuidar de uma cafeteria parece um bom negócio para quem deseja estabilidade e sossego depois de anos vivendo, de acordo com Kak Mus, muitas vidas diferentes.
“Eu vivi muitas vidas e todas elas me guiaram até aqui, e tá tudo bem. Pelo menos eu consegui vivê-las. Todas elas. Essa é a verdadeira benção, se você me perguntar.”
Porém, o método de enfrentamento dos dois é bem parecido: a música se torna uma fuga extremamente bem-sucedida. Rama vai passar toda a história fazendo música. Meiko aprende a fazer música depois de perder alguém. Ambos se apresentam no final como forma de expiação de seus próprios demônios.
a parte em que o texto vira sobre mim, vocês sempre a esperam mesmo...

Mas não é somente essa intertextualidade que faz os temas e a estética desse jogo funcionarem tanto para mim. Ele já é meu jogo do ano, adiantando essas discussões de dezembro com os amigos daqui da redação, e isso se dá porque Afterlove EP saiu num dia muito inoportuno. Tive um dia relativamente normal naquela sexta-feira. Acordei, respondi meus e-mails, entrei em chamada com meus amigos no Discord do Nautilus até que a menina que eu gosto me ligou e ficamos meia horinha no telefone. Quando desligamos, o jogo tinha saído. Comprei e fui jogar. Fiquei no computador até a hora de ir para a faculdade. Lá, no meio de uma aula extremamente caótica, recebi uma mensagem no meu Telegram da Saito, uma das minhas amigas da internet, me informando que o Jak, outro dos meus webcolegas, havia falecido na semana anterior.
Meu coração dói até agora de falar sobre o Jak. Além de ser um dos amigos de internet mais antigos que eu tinha, com certeza foi o que eu mais convivi. Brincávamos que ele não pensava muito nas coisas. Na real, quando o conheci, tinha a mania de me irritar com um maldito vídeo cringe de um cara aleatório no YouTube cantando Smooth Criminal, do Michael Jackson, em português. Ele amava tanto esse vídeo que, até hoje, sua @ no Bluesky é “JakFrostAstuto”, em homenagem ao título da paródia, “Astuto Bandidão”.
Fiz várias maratonas do Oscar com ele. Jogamos Resident Evil 5 e quase terminamos todas as campanhas do Resident Evil 6, faltou apenas a da Ada Wong, que enrolei para jogar porque, sinceramente, era a campanha da Ada. Foi a pessoa que dividiu It Takes Two comigo e, sem dúvida alguma, jogar aquele jogo com Jak foi uma experiência muito divertida. Muitas das horas que passei com ele foram simples conversas sobre nada, ou a gente se reunindo para fazer qualquer brincadeira pouco compromissada que nossa bolha estava fazendo no Twitter.
Nunca nos conhecemos pessoalmente, pois, mesmo que Jak viajasse bastante com os pais, quando ele veio para São Paulo, a agenda dele era bem restrita. Porém, ao mesmo tempo, é assustador. A primeira vez que perdi um amigo foi enquanto jogava Afterlove EP. Ainda estou em processo de luto, ainda estou tentando processar tudo o que aconteceu, ainda estou engolindo seco quando penso que não posso mais passar tempo com essa pessoa jogando conversa fora, falando mal de filmes medíocres ou rindo com as bobagens que surgem nessas campanhas co-op.

Jak significava muito mais para mim do que eu imaginava. Uma de minhas anedotas preferidas com ele foi quando, por chamá-lo apenas pelo nick de internet, nunca havia pensado direito em “qual era seu verdadeiro nome”. Daí, algumas vezes, vi um certo Luís Otávio curtindo meus stories e fiquei confuso, até descobrir que ele era, de fato, Jak, em sua conta pessoal, sem o avatar do mascote da Atlus — esse que eu modifiquei na época da Copa do Mundo para se tornar verde e amarelo e ele poder usar durante o evento, da mesma maneira que eu estava usando uma Futaba Sakura de verde e amarelo.
Muito tempo que passei com ele foi vendo memes de Persona. Quase toda semana, enviava vídeos bobos que apareciam em meu Reels sobre a franquia da Atlus. Jak era fã declarado da série, e me assistiu jogar todo o Persona 4 Golden há quase dois anos atrás. Acho que minha campanha do inevitável Persona 6 será mais agridoce do que imagino. Poderia passar horas aqui listando histórias engraçadas com o Jak, mas acho que é o suficiente. No dia da notícia, fiz de tudo. Me culpei por acreditar não ter sido um amigo tão bom, culpei outras pessoas que me irritaram naquele dia com mensagens extremamente elaboradas sobre o luto que estavam passando por alguém que não conheceram tão bem quanto eu conheci.
É bobo, mas depois de conversar com alguns amigos que já haviam passado por esse luto que eu estava conhecendo agora, entendi que nada mais era que um mecanismo de defesa que meu corpo estava criando nesse momento. Mas, talvez, escrever esse texto, bem como jogar Afterlove EP, tenha me feito bem por causa disso. Acabei de listar uma série de eventos envolvendo meu amigo. Acabei de entender que eu amei tanto quanto podia. Dividi com você, leitor, algumas das minhas memórias mais queridas com meu amigo, da mesma maneira que, no jogo, Rama divide suas memórias mais queridas envolvendo Cinta com o jogador, se você as procurar direito.

A última cena dessa história é uma conversa final com o fantasma de Cinta na estação de trem. Cinta diz que, por mais que o último mês tenha sido intenso, Rama aprendeu muitas coisas, conheceu muitas pessoas e se tornou praticamente uma pessoa nova. Tornou seu mundo colorido quando a ausência dela deixou cinza. Eu consigo imaginar que, do jeito que eu me senti quando recebi a notícia do falecimento do Jak, do jeito que Rama sentiu quando viu Cinta morrer, foi a maneira com a qual os outros trabalhadores do Pikselnesia se sentiram quando Fahmi faleceu.
Meu momento preferido de videogames em 2023 foi o final de Coffee Talk 2: Hibiscus and Butterfly, em que o bartender se encontra com Fahmi em sua cafeteria, uma maneira perfeita de homenagear seu amigo. Mas aqui, foi diferente. Afterlove EP era um projeto de Fahmi, um projeto que foi finalizado a passos e tropeços por sua equipe, que descreveu que fora muito difícil trabalhar sem ele lhes liderando, dizendo que fizeram um bom trabalho ou fazendo piadinhas para alegrá-los no escritório. Mesmo que essa homenagem tenha saído com vários defeitinhos, ela se tornou uma carta de amor ao amigo que se foi.
E, dessa mesma maneira, essa análise é uma carta de amor ao Jak, ou melhor, ao Luís Otávio Paiva Filho, estudante de jornalismo da Universidade Federal do Ceará, que nasceu em 2003 e faleceu, com 21 anos, em 2025, deixando pai, mãe e irmã, além de, claro, a pessoa que está escrevendo esse texto e o grupo que ele conversava quase todos os dias. Você não será esquecido, Jak. Obrigado.

Texto editado e revisado por Maya Souza (@ShinMayanese).
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