Introdução
Tendo como carro chefe do estúdio os jogos de luta ultra velozes Lethal League e a sua continuação Lethal League Blaze, a desenvolvedora Team Reptile resolveu apostar em um novo projeto totalmente diferente e voltado para o esporte radical. Estamos falando de Bomb Rush Cyberfunk.
Desde seu anúncio em 2020, a internet abraçou todo o seu estilo funk de ser, que prometia nos imergir nesse mundo futurista, dotado de uma energia dançante e uma atmosfera que prioriza acima de tudo a diversão e o estilo na hora de alcançar incontáveis pontos e grafitar toda a cidade.
Foi com muita ansiedade que adquiri esse jogo no lançamento e o experimentei a fim de saciar toda aquela saudade que eu estava de seu antecessor espiritual Jet Set Radio. Porém, nem só de saudosismo vivem as homenagens, e se Bomb Rush Cyberfunk atendeu ou não as minhas expectativas, você confere a seguir. Boa leitura!
Ar de sucessão
Mesmo tendo sido um console descontinuado não muito tempo depois de seu lançamento, o SEGA Dreamcast foi tão icônico e influente que se mantém até hoje no imaginário dos fãs, e não é muito difícil entendermos o porquê disso nos dias de hoje.
Além de ter sido o estreante da sexta geração de consoles, o que por si só já atraiu diversos olhares, o Dreamcast contou com uma biblioteca repleta de grandes jogos que construíram uma base de fãs invejável.
Shenmue, por exemplo, chegou com os dois pés na porta no começo da vida útil do Dreamcast, mostrando ser estruturalmente diferente de tudo o que se via naquela época. Temos um mundo aberto bastante reativo com o ciclo de dia e noite, NPCs com rotinas próprias, interatividade e liberdade que no fim, junto de sua história e narrativa, cativou tanta gente a ponto de gerar uma imensa falta durante o hiato após o segundo jogo.
Quem não se lembra da força que foi o financiamento coletivo para a volta da franquia com Shenmue III? Os fãs clamavam pelo seu retorno de um jeito ou de outro, motivados pela necessidade de estarem sob aquela atmosfera novamente. Todos queriam saber do desfecho da história de Ryo Razuki (e para a tristeza da maioria, essa última expectativa não foi atendida).
Algo não idêntico mas muito semelhante ocorreu com Jet Set Radio (JSR), obra que também deu as caras pela primeira vez no Dreamcast, e que com todo o seu estilo, personalidade, visual e sonoridade, serviu como um frescor em meio aos saturados jogos de ficção científica e fantasia. Apostando no cenário urbano dominado pela garotada que só quer andar de patins, fazer seus grafites e dançar, não demorou para o título ganhar destaque.
A franquia conquistou uma galera e obteve mais e mais fãs apaixonados com o passar do tempo visto que se tornou um clássico cult. Desde a sua continuação Jet Set Radio Future, lançada exclusivamente para o primeiro XBOX em 2002, não tivemos mais nada além da adaptação do primeiro jogo para o Game Boy Advance, então é natural a ansiedade da comunidade por algum retorno ou mesmo um sucessor espiritual. Afinal, foram cerca de 20 anos sem nada que tivesse exatamente aquela energia “cool”, “funky” em sinergia com a temática antissistema, tudo envolto de uma musicalidade dançante com muito eletrônico, hip hop e principalmente FUNK.
Posto isso, o anúncio de Bomb Rush Cyberfunk, transmitindo exatamente essa energia em seus trailers e carregando consigo todas estas características citadas, chamou muito a atenção de quem não largava o pé implorando por qualquer novidade do tipo. Por consequência, o jogo já se estabeleceu, não diretamente, desde seu anúncio como o sucessor espiritual de Jet Set Radio, e já adianto que após tê-lo jogado, reforço esse título mais do que nunca.
Uma história de perder a cabeça
Um grande foco em narrativa, verdade seja dita, não é o que esperamos de uma experiência como Bomb Rush Cyberfunk. Ainda que ao assistir os trailers fosse possível visualizar uma cena ou outra que pudesse instigar a curiosidade, no fim do dia, o que se esperava não era nada além de uma contextualização, um plano de fundo para sairmos fazendo manobra pelo mundo afora. Entretanto, para a minha surpresa, o jogo se dedica consideravelmente em te contar uma história divertida, utilizando de suas cenas e diálogos para além de apresentações das gangues e bairros, mas também para gerar perguntas, revelar suas respectivas respostas e apostar em reviravoltas que, são previsíveis, mas bem vindas.
A obra começa com o nosso protagonista fugindo da prisão graças a ajuda de um membro da equipe Bomb Rush Crew (ou somente BRC) que, acreditando em nosso potencial, resolve nos ajudar em troca de apoio com o grupo. E são nesses primeiros instantes limitados a um cenário fechado e linear que é passado o essencial para o jogador, bem como a principal figura antagonista — também presente na série Jet Set Radio: a exacerbada força policial cada vez mais crescente com o passar da campanha, motivada por um forte reacionarismo sobre a cultura do grafite.
É no fim desta correria que, quando tudo parece estar certo, o protagonista é atingido por uma lâmina com formato de disco em seu pescoço, perde a cabeça, e é socorrido pelo colega de fuga que o leva para um especialista que coloca uma cyber cabeça no lugar, dando para aquele corpo uma outra consciência.
E é brincando com esse conceito de uma nova consciência que nos vemos cumprindo o acordo que a antiga cabeça fez de apoiar a gangue BRC enquanto buscamos descobrir mais sobre o antigo portador do corpo. Uma jornada sobre recordar de quem éramos e descobrir no processo quem é o real inimigo.
Apesar da previsibilidade e superficialidade em questões voltadas à auto descoberta do personagem principal, a história acaba sendo divertida de se acompanhar, sobretudo por conta da personalidade que o jogo exala. Apesar de não termos o tempo suficiente para chegar a se importar de verdade com os personagens, é divertido acompanhá-los fazendo as suas piadas e dancinhas. Além disso, os planos escolhidos entre os diálogos realçam a beleza que New Amsterdam tem a oferecer e por tabela prestigia a excelente direção artística que faz jus ao cell shading que tanto víamos em JSR.
Por fim, muito me alivia ver que Bomb Rush não desperdiçou a oportunidade de sempre seguir aquele contraste de abordar a luta antissistema contra uma força fascista que não hesita em reprimir a oposição, ao mesmo tempo que não deixa toda aquela energia cair, tratando o tema com a devida “leveza”. Considero isto a cereja do bolo.
Passeando por New Amsterdam
Já que a cobiça por descobrir o próprio passado se entrelaça com a necessidade de se tornar um All City (que resume-se em dominar todos os bairros), o protagonista não hesita em fazer aquilo que de fato cobiçamos: Explorar e grafitar a linda New Amsterdam.
A mencionada Nova Amsterdam conta com regiões bastante diferentes entre si, o que nos ajuda a distinguir uma das as outras, dando uma cara para cada capítulo, indo de cidade a shopping, de pirâmide a enormes prédios, o que não foge muito do que já vimos em Tokyo To (especialmente em sua versão do JSR Future). Áreas como o terminal de ônibus e o próprio esconderijo da BRC são claras referências ao clássico da SEGA. Às vezes, o sentimento era de estar em uma Tokyo To reinterpretada, o que para mim, como fã, foi uma homenagem e tanto, mas entendo que para muitos pode soar como falta de criatividade e inovação.
O mapa é dividido em diversos bairros ligados uns aos outros. Estes bairros são amplas áreas que funcionam como verdadeiros playgrounds para o jogador brincar, construindo os combos e alcançando cada um dos pontos de grafite espalhados pelo mapa, desde os mais fáceis e expostos até os mais inalcançáveis e escondidos, além, é claro, de todos os outros coletáveis opcionais como as diferentes roupas para os personagens, skates, patins bicicletas e até músicas.
Deste modo, a progressão do jogo se dá de maneira bastante semelhante a de um collecthaton, onde os grafites seriam os coletáveis, e a exigência de REP, que são os pontos de reputação adquiridos conforme realizamos as pichações, são as barreiras mínimas para o avanço. E neste caso, a progressão é notada à medida que membros da gangue local começam a aparecer pelo mapa oferecendo diferentes desafios até o embate final com a crew, através de uma batalha onde devemos pontuar o máximo possível durante dois minutos.
Estes embates são bem legais, seguindo a sistemática de três membros de cada equipe ao mesmo tempo fazendo manobras pelo mapa inteiro, com o intuito de decidir de uma vez por todas quem fica com a dominância do bairro para si. Uma pena os embates serem tão curtos fáceis, sobretudo quando já se entendeu como funciona o sistema de combo do jogo, que consiste em tirar proveito do manual para manter os pontos feitos com as tricks e os multiplicadores que são adquiridos usando os diversos elementos do cenário.
Falando no manual, este é um sistema que não se via em JSR e que foi herdado de franquias como Tony Hawk’s por exemplo, e é uma adição e tanto para o Bomb Rush, pois é com essa manobra (resumida em equilíbrio) que conseguimos manter os grandes combos que beira os milhões de pontos, e ainda que o jogo não exija números megalomaníacos, se torna útil principalmente para os jogadores que buscam 100% das conquistas, pois são nelas que encontramos consideráveis metas e verdadeiros desafios.
Conseguinte, podemos dizer que nem na crescente força policial que aumenta conforme grafitamos a cidade a dificuldade se mostra alta, afinal, os policiais são usados mais como artifício de serem apenas uma pedra no caminho do que uma verdadeira rocha que te empaca. E entre bater de frente com eles ou só despistá-los, vale muito mais encontrar o banheiro químico próximo para trocar as roupas do personagem e limpar todo o nível de pressão do que combatê-los propriamente dito, em razão de virem infinitamente.
E mesmo se fosse um número finito de inimigos, o combate, apesar de soar atraente por se basear em movimentos como as cambalhotas e manobras dos personagens, é simples e pouco inspirado, algo que se usado excessivamente se torna chato. Mas felizmente o jogo tem plena ciência de que este não é o seu atrativo e portanto, opta por entregar pouquíssimas sessões obrigatórias de porradaria que no fim cumprem bem seu papel.
Contudo, não pense que o fato de eu ter apontado sobre a dificuldade algumas vezes reflete a necessidade da mesma, a verdade é que o jogo tem ciência de que não precisa dela para ser proveitoso e sua proposta tem como prioridade a intenção de te fazer curtir seu tempo na Nova Amsterdam cultuando a arte do grafite, ouvindo excelentes músicas e dançando muito no processo, e somente em sua segundo plano te incentivar a otimizar algum combo e fazer bonito nas manobras.
Verdadeira vitrine de ARTISTAS
Falando na arte do grafite e nas excelentes músicas, não posso deixar de comentar sobre estes dois elementos que são cruciais para a experiência e parte do que a define como um todo. Uma vez estabelecido pelo público como sucessor espiritual de JSR, Bomb Rush Cyberfunk teve como obrigação acertar nestes quesitos e, para a nossa alegria, conseguiu. Foi um enorme prazer ver as artes e ouvir as músicas durante minha jogatina e muito do que consumi no processo instigou a ponto de me fazer buscar saber mais sobre quem desenhou e produziu. Mérito da variada e numerosa seleção de produtores e ilustradores muito bons no que fazem.
Para se ter uma ideia deste processo de apuração, parte dos grafites presentes no jogo foram escolhidos ao final de um torneio organizado pela própria Team Reptile, que teve como intuito dar espaço para os vencedores exporem seus trabalhos no jogo, terem seus nomes nos créditos além do prêmio de 100 dólares para cada um.
Foram 1.157 artes enviadas por mais de 700 pessoas e o resultado é insano. No site oficial da desenvolvedora foi divulgado uma colagem que mostra cada uma das imagens todas juntas. O trabalho árduo de escolher as favoritas deve ter sido no mínimo estressante, mas o fizeram, e divulgaram em seguida os finalistas. Caso queira ver os seus nomes, além de serem mencionados nos créditos do jogo, foram divulgados no site oficial da desenvolvedora.
Algumas das que mais gostei foram as do talentosíssimo Yapico, que por sua vez também foi responsável pela dublagem do personagem Tryce, o mesmo que nos acompanha durante a sessão de tutorial. Além do grafite “Zona Leste” desenhado por MES3, artista de São Paulo que garantiu um dedinho brasileiro sobre o jogo.
Mes3 não foi o único brasileiro a ter uma obra sua no jogo. Falando agora um pouco das músicas, o produtor Chediak teve parte ativa na construção da track “Refuse” cantada por Swami Sound, um dos meus sons favoritos e que acompanha todas as cenas de apresentação do querido Solace, O personagem mais excêntrico e engraçado de Bomb Rush.
E o que falar do soundtrack deste jogo? Entrega tudo aquilo que ouvimos em JSR e mais um pouco, com uma dose maior de ecleticidade e uma divisão clara entre os gêneros para cada capítulo do jogo. Se no começo dominamos o bairro Versum Hill ao som de Electro Funk, em sua segunda parte ouvimos House Music, depois Breakbeat e por aí vai finalizando com o Rap Hip Hop e claro, Funk.
Aqui não temos a forte presença do Professor K e sua locução da rádio pirata Jet Set, mas as mixtapes produzidas pelo DJ Cyber não ficam muito atrás, garantindo transições genuinamente boas e em uma ordem que nos fazem bailar entre músicas diferentes entre si mas que graças a mixagem, se mostram de fato sinérgicas. E claro que a playlist não precisa se limitar a estes sets, pois se caso o jogador optar por coletar os cds espalhados por Nova Amsterdam, elas se tornam selecionáveis no celular flip que, como se já não bastasse, também serve para tirar fotos com câmera frontal ou traseira.
Já havia sido divulgado, inclusive nos trailers, que a presença de Hideki Naganuma (responsável majoritário pela trilha de JSR) estaria presente no jogo. Não é a primeira vez que o mesmo empresta sua sonoridade para uma obra da Team Reptile, já que em Lethal League Blaze, jogo anterior da desenvolvedora, podemos ouvi-lo em sua música “AIN'T NOTHIN' LIKE A FUNKY BEAT”. O retorno dele em Bomb Rush se dá através de três incríveis faixas.
Mas como sabem, o jogo conta com 32 músicas, então não só de Naganuma que vive a obra. Outro produtor muito esperado pelo público assim que anunciado o jogo foi o 2 Mello, artista que deu vida aos recomendadissimos álbuns “Memories of Tokyo To” e “Memories of Tokyo To Future”, que fazem homenagens ao primeiro e ao segundo JSR respectivamente, e para o alívio dos fãs, a conhecida faixa “I Wanna Kno” é tocada na mixtape de breakbeat.
Todos que compõem a soundtrack são excelentes, mas para destacar meus favoritos, segue o nome dos artistas que adorei ter conhecido: GRRL, Cyber Milk Chan, Bx’treme, KiloWatts, Sebastian Knight, SkyBlew e wev. Podem esperar muitas dessas trilhas no Game Design Club, mix oficial da comunidade que compila o que há de mais divertido no mundo das OST de videogame.
Conclusão
Bomb Rush Cyberfunk foi um aconchegante presente, sobretudo para os assíduos admiradores de Jet Set Radio que tanto carecia de um jogo de esporte radical que patinasse tão bem sobre o estilo funk de ser. Seu gostosíssimo game feel, sua cativante personalidade somados a inspirada trilha sonora muito bem apurada o transforma na experiência mais memorável que tive em 2023.
Não apenas para os fãs da mencionada franquia da SEGA que recomendo Bomb Rush, pois ele pode servir muito bem como uma boa pedida para os que curtem franquias como Tony Hawk's Pro Skater e/ou Mat Hoffman's Pro BMX, ainda que seja mecanicamente mais simples que estes jogos.
Por fim, afirmo seguramente que este pode ser encarado como o mais próximo que temos de Jet Set Radio 3, sendo o mais acessível atualmente, e recomendável aos que pretendem experimentar a série pela primeira vez.
Este texto foi editado e revisado por Gabriel Morais de Oliveira.
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Um dos meus jogos favoritos do ano, ótima Review!