A ideia de uma aventura para a maioria da população gamer remete instantaneamente ao imaginário fantástico de empunhar uma espada (ou qualquer outra arma, é apenas um arquétipo) e sair em uma jornada incrível onde eventos importantes e batalhas incríveis culminam em um grande feito épico.
Essa imagem que a famosíssima Jornada do Herói evoca é poderosa e fascina não só jogadores, mas também desenvolvedores que querem um dia contar suas histórias, propor seus desafios e implementar suas ideias mirabolantes em um novo jogo do gênero.
Entretanto, aventurar-se nem sempre exige “empunhar uma espada” e lutar contra inimigos que se colocam em seu caminho. O gênero de “adventure”, como ficou extremamente popular em especial nos anos 80 e 90, é repleto de histórias onde não existe combate, e o dinamismo característico de embates empolgantes costuma ser substituído por quebra-cabeças e desafios diferenciados, como até mesmo duelo de insultos.
Caravan Sandwitch é uma proposta de jogo com temática de ficção científica que segue nesta linha de remover o elemento combate para focar em outros tipos de interação com o ambiente, em especial a exploração, a coleta de itens, a conversação com personagens-chave e a realização de tarefas.
UM SINAL, UMA ESPERANÇA
Em um planeta semiárido devastado e assolado por uma perene tempestade magnética, alguns humanos, robôs sencientes e alienígenas convivem entre as ruínas de uma exploração capitalista plenamente robotizada que outrora devastou o planeta. Na pele de Sauge, a protagonista, saímos repentinamente de uma das cidades espaciais onde ela mora com um de seus pais para investigar um sinal de transmissão que ela acaba de receber.
O motivo da pressa é simples: é um sinal emergencial que veio da nave de sua irmã desaparecida há 6 anos. Sem perder um segundo, Seuge toma um dos trens espaciais para retornar ao seu planeta natal Cigalo e assim buscar a origem da transmissão e quem sabe descobrir o paradeiro de sua irmã.
Assim, movidos pela esperança do reencontro, iniciamos nossa aventura pelo devastado planeta, mas ao invés de recebermos uma espada pois “é perigoso ir sozinho”, recebemos de uma velha amiga de Sauge uma van para nos locomovermos mais rápido pelas terras desérticas de Cigalo, cujo cenário pós apocalíptico nos oferta diversas ruínas e destroços de máquinas e fábricas que há 40 anos estão abandonadas.
Em troca do veículo, Rose, a nossa velha amiga (literalmente, ela é uma senhorinha), nos pede para que enquanto buscamos as respostas que queremos utilizemos também a única van funcional do planeta para auxiliar no que pudermos os poucos moradores que restam, já que essa é a função principal do veículo. Sauge aceita os termos e temos então nosso núcleo central de Caravan Sandwitch.
No comando da nossa protagonista e sua van (emprestada), iniciamos o reconhecimento inicial do terreno e o logo somos levados ao reencontro com diversos amigos e conhecidos que ficaram no planeta quando Sauge saiu para estudar e morar fora. Neste primeiro momento podemos entender um pouco a história desse lugar e o passado dos moradores, além de conhecer e captar uma fração de suas personalidades.
Também descobrimos que uma silhueta misteriosa está nos observando e vigiando nossos passos, o que nos introduz a mais uma camada dos mistérios que estão por vir. O que seria esse ser, se não mais um motivador para aguçar nossa curiosidade.
MUNDO ABERTO, MAS NÃO TÃO ABERTO
A estrutura de jogo de Caravan é uma velha conhecida de jogadores mais experientes. Sim, temos um mundo aberto, que faço questão de ressaltar que não é lá dos meus modelos favoritos, seguindo convenções que estamos acostumados e espalhando diversos pontos de interesse no mapa para que despertem nossa curiosidade.
Mas se tem algo que Caravan opta, é por tirar lições de alguns bons nomes desse tipo de design e por adotar um escopo bem, bem menor que a maioria dos jogos AAA que optam pelo modelo de mundo aberto.
Ao invés de um mapa grandioso como os GTA, Assassin’s Creed, Red Dead Redemption, ou colossal como os mais recentes Zelda Tears of the Kingdom e Elden Ring, Caravan opta por um tamanho de mapa cuja viagem de uma ponta à outra não leva mais do que alguns poucos minutos, reduzindo drasticamente o tempo de jogo.
Quando eu jogo esse tipo de jogo, como aconteceu com os dois Zeldas BOTW e TOTK, com Elden Ring e com Spiderman, depois de um determinado tempo de jogo (algo em torno de 30-40hs) eu já estou de saco cheio. Eu passo a usar nesse momento todo tipo de atalho, teleporte e transporte rápido pra otimizar as viagens e parar de perder tempo, além de ignorar sidequests.
Ao adotar um mapa bem menor do que esses grandes nomes e uma locomoção que não é um mero transporte, mas também um elemento importante de interação com o cenário (algo que já vi no barco dos Zeldas Wind Waker e Phantom Hourglass), Caravan Sandwitch conseguiu evitar que eu pegasse abuso do jogo, algo que acontece frequentemente com jogos de mundo aberto, inclusive os supra citados. Ainda mais porque levei quase 100h pra finalizar cada um dos Zeldas e também Elden Ring, me deixando exausto e com o desejo de nunca mais retornar aquele mundo. Isso não aconteceu com Caravan.
Além do escopo menor, também temos um mapa que não trabalha com ícones indicando atividades recorrentes, mas sim interrogações que consistem em pontos de interesse e que, se quisermos saber o que é, precisamos ir até lá. Não é a melhor utilização do conceito, uma vez que ainda trabalha com uma interface tipo GPS, mas ao menos instiga a curiosidade sem abarrotar o espaço com dezenas de ícones como vemos na maioria dos mundos abertos modernos (Horizon, Assassin's Creed, Spiderman, Ratchet & Clank, GTA...).
Inclusive foi em Zelda BOTW e TOTK que vi uma utilização mais orgânica desse conceito. Nesses jogos usamos as torres como mirantes, e é através do próprio ambiente virtual que nossa atenção é captada, ao invés de um ícone em um GPS. Uma opção nesse sentido teria tornado a exploração de Caravan ainda mais estimulante, mas tendo em vista o escopo menor e a pouca saturação de marcações, podemos dizer que deu bem bom.
Começamos com o mapa quase todo coberto, como se era de esperar, já que bloqueadores de sinal estão atrapalhando o GPS de mostrá-lo por completo, e com apenas nossa van básica para explorar. As primeiras missões nos orientam a desativar tais bloqueadores para "liberar" uma porção do mapa e também a explorar para juntar componentes eletrônicos e assim podermos fazer melhorias no veículo, desbloqueando novas ferramentas que nos possibilitarão chegar a diversos pontos do mapa inicialmente inacessíveis.
O ciclo de gameplay que compõe o núcleo de Caravan é exatamente esse: explorar, encontrar componentes e melhorar o veículo. Cada nova ferramenta nos permite retornar a áreas previamente visitadas e concluir sua investigação, bem como ir mais além e chegar em novos locais. Ou seja, apesar de possuir um mundo aberto, sua exploração é recheada de “travas” que precisam de itens específicos para prosseguir, tornando assim a progressão de certa forma mais “linear”, mas nem tanto, algo como a progressão típica em um metroidvania.
Apesar de muito da interação se focar na van, temos também uma boa quantidade de exploração e resolução de quebra-cabeças a pé. Nunca chegamos a ter nenhum tipo de arma, afinal, como já mencionado, o jogo não possui nenhum tipo de combate, mas recebemos ferramentas que permitem ter acesso a tirolesas que, junto das plataformas, escadas e buracos, compõem a exploração do ambiente. Esta é sempre dependente da ativação de interruptores e geradores de energia necessários para abrir portas e ativar pontes eletrônicas.
Se Caravan fosse um jogo com o dobro de seu tempo ou escopo, ou mais do que isso, seria necessário muito mais criatividade da parte da equipe para tornar o jogo mais variado e evitar o cansaço. Esse é um tipo de lição que eu gostaria que empresas como a Ubisoft aprendessem: menos é mais. E se quiser mais, pois varie mais. Essa falta de noção torna diversos jogos de mundo aberto corroídos pela repetitividade ao longo do tempo. Fiquei feliz que a equipe da Plane Toast soube acertar a dosagem.
VAI TRANQUILO, NO SEU RITMO, CONSTRUINDO A NARRATIVA
Uma das características mais destacadas de Caravan é seu ritmo. Por não ter nenhum tipo de pressão por conta de tempo, gestão de recursos de sobrevivência ou inimigos desafiadores, o ritmo de jogo se torna levemente descompromissado e relaxante. Claro, estamos tentando resolver uma pá de mistérios, mas o fazemos no nosso tempo.
Parte da beleza de Caravan está no seu gameplay relaxante e estimulante, onde vamos avançando na realização de tarefas e vendo o progresso na exploração desenrolar por meio de portas sendo destravadas, mecanismos sendo acionados, energia fluindo e toda a parte audiovisual é particularmente satisfatória nesse intuito. São sons divertidos e vivazes com uma direção de arte com cores vibrantes mesmo em um ambiente de deserto, onde poderiam prevalecer tons mais terrosos e lavados. Mas a outra parte da sua beleza reside na sua narrativa.
A gama de personagens que encontramos e interagimos vai nos preenchendo lacunas acerca da história do mundo de Caravan. O que houve com o planeta, quem são os responsáveis, quais impactos foram causados e o que o futuro nos reserva são pedaços que são montados aos poucos ao longo dos diálogos e tarefas que realizamos nos diversos capítulos que compõem a campanha.
A quantidade de missões sempre se mantém palpável e estimulante, vale ressaltar. Cerca de quatro missões por capítulo, em média, evitam que o jogador seja bombardeado de pequenos trabalhos sacais que vão enrolando o desenvolvimento da história principal e tornando o gameplay repetitivo e maçante ao longo do tempo.
Apesar de algumas dessas tarefas envolverem a coleta de materiais, a maioria é mais pautada na exploração e busca de objetivos que sempre recompensam com um pouco mais de desenvolvimento dos personagens, da trama ou avançam a história. Há algumas pequenas semelhanças com jogos de colecionar coisas, os “collectathons”, mas apenas de leve e mais para quem quiser realizar todas as conquistas do jogo.
diversidade, riqueza e qualidade ao invés de quantidade
É em suas interações de desenvolvimento que Caravan vai trabalhando suas temáticas. Por conta da variedade, apesar da pequena quantidade de personagens, o jogo consegue trabalhar temas como a destruição provocada pela ambição exploratória (capitalista) de acionistas de grandes corporações, inteligência artificial e consciência robótica, o senso de comunidade e família, produtividade e ajuste social, e bastante diversidade.
A equipe francesa se dedicou bastante em criar um elenco recheado de personagens com características únicas e variadas. A própria protagonista, apenas para ilustrar, possui dois pais: um que ficou no espaço, e outro que ela reencontra em Cigalo. Mas além de diversidade humana também temos uma raça de homens-sapo e os já mencionados robôs, que possuem nome, individualidade e personalidade próprias.
Caravan Sandwitch é, acima de tudo, divertido, rico e suficiente. O seu escopo lhe permite trabalhar ao máximo suas mecânicas e desafios dentro de sua proposta sem se tornar cansativo e arrastado, enquanto desenvolve sua história ao longo de algo em torno de 10 horas de duração.
Seu ritmo, apesar de livre de pressões, te instiga e te conduz - por meio de suas missões objetivas e enxutas, além de seus mistérios intrigantes - a progredir sempre, e esse progresso vem acompanhado de uma bela história de tragédia, amor, ecologia e cooperação.
É também um exemplo extremamente positivo de como trabalhar bem um mundo aberto, especialmente em um mercado abarrotado de jogos com esse modelo que, pra fazer valer seus orçamentos estratosféricos, saturam seus mundos virtuais com um excesso exaustivo de atividades principais e secundárias.
Talvez seja esse um dos melhores caminhos que a indústria deveria adotar para seus jogos de mundo aberto, oferecendo uma campanha principal objetiva, concisa e que trabalha bem suas mecânicas e lore, sem estender demais sua duração. Esse é o tipo de mundo aberto que não me faz torcer o nariz, o tipo de jogo que consegue me oferecer todas as vantagens de um design nesse modelo, sem vir com seus maiores defeitos que vamos combinar, é mais um problema de produção do que do "gênero" per se (mundo aberto não é exatamente um gênero).
E para quem quiser extrair mais tempo do jogo, como é possível em Caravan também, as conquistas oferecem um estímulo para encontrar todos os seus colecionáveis e realizar todas as suas tarefas. Pra quem se importa, claro.
Pesquisei mais sobre a equipe, buscando descobrir se já tinha lançado outros jogos. Não achei nada creditado a eles, então acredito que se trata do seu primeiro jogo. Sendo assim, não tenho como não parabenizar imensamente pelo belíssimo trabalho, e encorajá-los para que sigam nessa direção.
A versão de jogo que tivemos acesso para escrever essa análise foi fornecida um mês antes de seu lançamento, portanto ainda tinham alguns poucos ajustes e detalhes a serem polidos, como a tradução dos diálogos e algumas instabilidades que não acompanham a versão final comercial. O jogo foi concluído de cabo a rabo no Steam Deck, com ótima performance, optando por visual mais simplificado em prol de maior fluidez de gameplay.
Espero que sua experiência com o jogo seja tão boa quanto a minha, pois tenho muito prazer em recomendar Caravan Sandwitch sem reservas.
Agradecemos gentilmente a Studio Plane Toast pelo envio de Caravan Sandwitch para análise em texto.
Texto editado e revisado por Gabriel Morais de Oliveira (@GabrielHyliano).
Você também pode gostar de: Sword of The Berserk Gut's Rage: Relembrar é amar — Análise
Já pensou em fazer parte do no nosso grupo do Discord? Lá temos vários eventos, materiais de estudo e uma comunidade incrível esperando por você. É só clicar aqui!
Siga o Game Design Hub nas redes sociais!
Comentários