
ROUBOS, PERSEGUIÇÕES E CULTURA
Há cerca de 30 anos, por volta de 1995, eu assistia na televisão a um desenho no finado programa infantil TV Colosso da Rede Globo. Nele, uma ladra trajando seu icônico chapéu e sobretudo vermelho sempre dava um jeito de escapar de um grupo de investigadores que tentava, a todo custo, lhe capturar e recuperar os bens que ela havia roubado. O nome do desenho era oficialmente Em que lugar da Terra está Carmen Sandiego?, mas nós sempre chamamos somente de Carmen Sandiego. Durante a sua exibição, diversas curiosidades de conhecimentos gerais e geografia eram ensinados ao telespectador. A dupla de protagonistas era formada por um garoto e uma jovem um pouco mais velha, mas ambos bem jovens, o que fazia com que a gente meio que se identificasse bastante com o duo e suas façanhas.
Um dos personagens importantes, o Player, era um garoto real sem rosto que sempre estava sentado no computador fornecendo informações à dupla de agentes que tentava capturar a antagonista, Carmen, mas às vezes recebia mensagens provocativas da própria, como se ela estivesse zombando de suas habilidades e se divertindo com a caçada. Era bem legal, e ficou bastante marcado na minha memória. Por volta do mesmo período, ainda na década de 90, eu conheci o jogo para computador Where in the World is Carmen Sandiego?, e na época eu achava que o jogo era baseado no desenho, mas eu estava redondamente enganado.
O software é originalmente de 1985 e foi criado pela empresa Broderbund, também conhecida por Karateka, Prince of Persia e Myst, três grandes clássicos dos jogos de computador. A Broderbund era especializada em jogos e softwares educativos e Carmen Sandiego era um de seus maiores sucessos nessa linha de entretenimento. A minha versão, de MS-DOS, foi conseguida com colegas de escola por meio de disquetes copiados, o que, para minha surpresa, nos impedia de avançar na progressão dele.

O motivo era que o jogo, baseado em investigação de roubos fantásticos tentando capturar os ladrões, envolvia fazer viagens a diversos países do mundo e em determinado momento, após a captura do bandido, pedia ao jogador pra responder uma pergunta cuja resposta estava em um almanaque de conhecimentos gerais que era distribuído junto com ele. Como o disquete era uma cópia de uma cópia, de outra cópia sabe-se-lá de quem, e não o produto oficial, não tínhamos acesso a esse almanaque nem para tirar xérox.
Não era incomum esse tipo de tática usando objetos físicos distribuídos junto dos jogos para dificultar a pirataria, então meu progresso no jogo estava impossibilitado já que não sabíamos a resposta e a internet ainda não era algo difundido. Posteriormente, eu descobri outras versões do jogo que não possuíam tal proteção, então pude me divertir mais com ele avançar bastante. Até dia desses minha memória lembrava de poucos detalhes do desenho animado dos anos 90, mas descobri um canal do YouTube que possui a série completa e resolvi reassistir, e qual não foi minha surpresa ao ver que o desenho adapta muito bem o jogo e ainda se mantém bastante atual. Além disso, descobri algumas coisas que eu não sabia ou não lembrava e mudou muita coisa que eu lembrava.
Uma dessas descobertas veio num dos episódios onde os protagonistas encontram o ex-mentor da Carmen. O sujeito deixa claro que a lendária ladra era uma investidora e agente da ACME que se rebelou, se tornando expert em roubos fabulosos e engenhosos com o emprego de diversos equipamentos eletrônicos e geringonças típicas do imaginário popular de agentes secretos e espiões. Tendo se rebelado, ela chefia a organização criminosa V.I.L.E. (Villains’ International League of Evil, ou Liga Internacional do Mal dos Vilões), mas sempre mantendo uma espécie de código de ética e o hábito de provocar os detetives da ACME com pistas sobre seu próximo destino.
O nome ACME, inclusive, é bastante recorrente em animações desse período, em especial nos desenhos da Warner Bros. Porém, enquanto lá significa American Company Manufacturing Everything (Empresa americana que fabrica tudo), no Carmen Sandiego de 1985 o significado era A Company that Makes Everything (Uma empresa que faz tudo), ligeiramente diferente, mas ainda em consonância com as brincadeiras da época.
NOVOS SHOWS, NOVOS JOGOS, NOVAS ERAS

A franquia Carmen Sandiego teve outros tipos de shows televisivos derivados, em formatos mais próximos de programas de auditório com equipes competindo entre si. Outros jogos também foram sendo lançados ao longo dos anos, dando sobrevida à franquia. Após quase 20 anos do encerramento da primeira animação que eu vi quando criança, a Netflix, em parceria com as produtoras Houghton Mifflin Harcourt, WildBrain e HarperCollins, resolveu fazer uma nova série animada, focada em apresentar aos filhos das pessoas que assistiram a série original a personagem, com objetivo de provocar diálogos intergeracionais.
Nessa série, a Netflix optou por um reboot e uma mudança de perspectiva na narrativa. Agora temos a outrora antagonista Carmen Sandiego no papel de protagonista e heroína, subvertendo seu papel original. A origem da personagem foi toda reescrita, sendo ela uma criança órfã que foi criada pela V.I.L.E. pra se tornar uma protagonista da liga, mas que descobriu seus atos malignos e resolveu se rebelar. Curiosamente, o oposto da premissa original. Além de que é que nessa versão o nome ACME significa “Agency to Classify & Monitor Evildoers”, ou Agência para Classificar e Monitorar Malfeitores.
A série foi muito bem avaliada e aclamada por críticos, apesar de estarmos vivendo uma época muito diferente da série dos anos 90. Naquele tempo, todos assistíamos aos mesmos desenhos que passavam na TV aberta. Não era incomum que conversássemos com nossos coleguinhas no colégio sobre os desenhos vistos no dia anterior, de modo que, ainda que não tivéssemos essa troca, havia uma experiência compartilhada entre quase todas as crianças da sala. Hoje, a oferta de atividades e opções de entretenimento são tão amplas, que consumir a mesma série é algo muito menos comum do que antigamente. Crianças brincam no celular, nos videogames, assistem streamings de vídeo como YouTube Kids, e raramente comungam da mesma experiência de animações vistas, especialmente aquelas que são exibidas em um serviço de streaming específico, como é o caso dessa nova versão da Netflix.
Assim, Carmen Sandiego de 2019 não causou muito furor quando lançou por aqui. Mesmo durante a pandemia, não se viu especialmente entre o público brasileiro muito comentário sobre, em especial o público-alvo, o infantil, mas certamente a série fez sucesso o suficiente para chegar até sua quarta e última temporada, encerrando em 2021 com um total de 32 episódios e um especial. Pegando carona na série, a Netflix e a Harper Collins, em parceria com a Gameloft, anunciaram para esse ano de 2025 um novo jogo da Carmen Sandiego, onde, pela primeira vez em 35 anos, a vermelha é a protagonista no combate aos crimes da V.I.L.E.
JOGO NOVO, JOGO VELHO, ROUPA NOVA

Carmen Sandiego de 2025 é esse nosso novo jogo da franquia e uma experiência de design intrigante que se desafia a mesclar nostalgia e inovação. Utilizando do mesmo loop do original de 1985, a missão da Gameloft é de ampliar e diversificar o design básico do qual a premissa parte, ou seja, trabalhar com familiaridade de uma fórmula já testada e aprovada, se desafiando a modernizá-la e aprofundá-la. Deste modo, nesta nova versão, o jogador segue caçando os criminosos responsáveis pelo roubo de algum item importante para algum país, coletando pistas em localidades e usando as dicas fornecidas para descobrir a identidade do responsável e pra onde ele está fugindo. O jogo segue nessa brincadeira de gato e rato até que finalmente o jogador consiga identificar, encurralar e prender o ladrão.
Mas aqui temos duas grandes diferenças. Se originalmente Carmen Sandiego era um jogo mais arcade e direto ao ponto, onde cada caçada era uma partida e a progressão simplesmente acumulava pontos para promover o nível de agente, essa nova versão adiciona uma narrativa contínua entre cada roubo responsável por conduzir a trama, com um constante diálogo da protagonista Carmen Sandiego e o seu hacker favorito, Player. É isso mesmo. Pela primeira vez na história da franquia nós acompanhamos Carmen como protagonista. E aqui vem a segunda novidade para o design: os minigames. Ao invés de simplesmente selecionar um local e ler as dicas lá fornecidas por um NPC, a Gameloft adicionou uma boa variedade de exploração e minigames que o jogador precisa vencer para liberar dicas mais úteis e desbloquear curiosidades sobre os locais visitados.

Toda a apresentação do jogo é feita por menus que mesclam elementos 3D e interface vetorial, o que nos traz um fato a ser mencionado. Apesar de estar chegando agora em março para todas as plataformas, o jogo já está disponível para celulares desde janeiro. Quem acompanha a Netflix Games e costuma baixar os jogos novos da produtora, já pode jogar o jogo gratuitamente se for assinante da plataforma de streaming. A versão para mobile de Carmen Sandiego é exatamente a mesma para as outras plataformas, para o bem e para o mal. Isso implica que a qualidade da modelagem e texturas dos ambientes e personagens tridimensionais é a mesma de um jogo mobile, e isso não é exatamente um demérito.
O demérito real fica por conta da total ausência de configurações e opções gráficas que jogadores de PC estão acostumados. Isso pode ser incômodo para jogadores mais exigentes que gostam e prezam por essas opções, especialmente por conta de alguns pequenos probleminhas de renderização de texturas que o jogo possui e são visualmente perceptíveis nos personagens quando se joga em telas maiores. Mas sinceramente essas pequenas imperfeições passam batido em vista da apresentação e personalidade da nova direção de arte. Além da campanha principal que explora essa direção, ainda temos um modo chamado Arquivos ACME, que explora com gráficos mais retro o modelo arcade que tornou o jogo de 1985 tão famoso e amado no mundo todo.
Com toda a roupagem nova e uma trilha sonora adequada e de boa qualidade somada aos visuais modernos, a Gameloft certamente logra imenso êxito em sua proposta. É o modelo clássico de Carmen Sandiego, atualizado e repaginado com novas mecânicas e entregando às novas gerações uma experiência tanto fiel à nostalgia, como repleta de inovações que a fazem brilhar nesses tempos, resgatando uma joia de uma era que videogame era muito mais simples, direto e em muitos aspectos, mais divertido, sem exagero e sem excesso de estímulos que compõem tantos jogos atuais.
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