
Bucólico. Uma das palavras mais curiosas da língua portuguesa que guarda uma semelhança considerável com um outro verbete muito mais comum em nosso vocabulário: sertanejo.
As duas palavras, apesar de guardarem semelhanças ao se referir à vida e o cotidiano no meio rural, divergem em um ponto muito específico, o realismo. O sertanejo é tradicionalmente associado ao cotidiano da vida no sertão, as dificuldades da vida no campo e frequentemente ilustrado com tons mais realistas e emocionais.
A literatura brasileira, por exemplo, é recheada de romances com a temática sertaneja bem como o próprio gênero musical de mesmo nome, por acaso um dos mais populares em terras tupiniquins, que evoluiu ao longo dos anos e hoje se tornou um tanto diferente de sua origem, apesar de ainda guardar canções centenárias e icônicas, como “Tristeza do Jeca”, “Chalana” e “Ando Devagar”.

Já o bucólico trata de exaltar a vida no meio rural, mas está mais ligado a uma visão idealizada e poética campestre. Não é incomum encontrar na literatura brasileira, apesar da predileção pelo sertanejo, já que o bucolismo é mais influenciado por correntes literárias europeias, enquanto o sertanejo retrata uma realidade brasileira, estando enraizado em nossa cultura.
Livre filho das montanhas, Eu ia bem satisfeito, De camisa aberto ao peito,- Pés descalços, braços nus - Correndo pelas campinas À roda das cachoeiras, Atrás das asas ligeiras Das borboletas azuis! Naqueles tempos ditosos Ia colher as pitangas, Trepava a tirar as mangas, Brincava à beira do mar; Rezava às Ave-Marias, Achava o céu sempre lindo, Adormecia sorrindo E despertava a cantar! - Casimiro de Abreu (Meus Oito Anos)
Na música brasileira, “Majestade o Sabiá” e “Deus e Eu no Sertão” são exemplos de canções que se aproximam muito mais do bucolismo do que do sertanejo em virtude de sua exaltação do sertão como sinônimo de liberdade, tranquilidade e felicidade.
Enquanto eu escrevia anteriormente sobre Fantasian aqui para o Game Design Hub, me dediquei ao estudo das características típicas do texto japonês, tendo encontrado uma recorrente exploração de temáticas associadas ao relacionamento com a natureza, dentre eles o mono-no-awase e as crenças xintoístas.
Daí me perguntei: seria a literatura japonesa rica em bucolismo ou estarei eu viajando demais?
Não sei se é particularmente justo atribuir o caráter bucólico às obras japonesas que se passam no campo, pois não necessariamente há uma idealização poética e enfática, típica do estilo, mas ainda assim ela costuma aparecer de uma maneira mais sutil.
O interior per se é um cenário optado não só por conta da origem dos autores, mas também pelo folclore rico que se espalha pelo arquipélago nipônico desde os tempos mais antigos, reforçado pela quantidade de templos xintoístas distribuídos pelo país, fora de grandes centros urbanos. Uma espécie de aura mágica quase invisível envolve não a prosa, mas a própria ambientação dessas obras.
Podemos encontrar no acervo japonês exemplos de jogos que refletem esse traço. Attack of the Friday Monsters A Tokyo Tale (2013) e a série Boku no Natsuyasumi (2000-2009) são bons exemplos, além de Natsu-Mon! 20th Century Summer Vacation (2023). Todos esses jogos, curiosamente, possuem um ponto em comum: Kazuhiro Ayabe.

Um mestre do bucolismo ou sertanejo japonês?

Kazuhiro “Kaz” Ayabe pode ser considerado como um adepto de uma forma de bucolismo contemporâneo no contexto dos videogames. Em seus jogos, há um foco em narrativas nostálgicas e tranquilas, com uma atmosfera rural detalhada e imersiva, sempre focando num estilo de design não-linear e relaxante.
Em Boku no Natsuyasumi, por exemplo, que chegou ao ocidente como My Summer Vacation, o foco do gameplay não é avançar em uma trama, como costuma ser em adventures japoneses, mas sim retratar as férias de verão de uma criança no interior do Japão com uma imensa liberdade narrativa e de gameplay.
Atividades simples como capturar insetos, pescar e explorar os arredores, interagindo com as pessoas e participando de eventos, são o núcleo mais marcante da série. São jogos que, essencialmente, evocam uma sensação de saudade por tempos mais simples, algo que cativa não só autores como também jogadores adultos.

Em meio aos eventos que compõem a narrativa, temas como dinâmicas familiares, interações humanas e momentos de reflexão, sem pressão por metas ou desafios, são exploradas de formas tipicamente japonesas, com uma leveza tanto no texto e quanto na profundidade filosófica empregada.
Outra obra mais recente e de destaque de Ayabe é o já mencionado Natsu-mon: 20th Century Summer Vacation. Tanto Natsu-Mon como Boku no Natsuyasumi exploram e celebram a simplicidade da vida rural, a conexão com a natureza e a nostalgia, características típicas do bucolismo.

Porém, ao contrário do estilo literário tradicional, que tende a idealizar o campo de forma poética, Ayabe incorpora elementos realistas do cotidiano rural japonês, mesclando essa visão idealizada com detalhes culturais e familiares que tornam suas obras acessíveis e imersivas.
Ao incorporar esse elemento realista, Kazuhiro cria uma espécie de sertanejo-bucólico propriamente japonês, compartilhando esse traço com nomes de grande renome tais quais Hayao Miyazaki (Meu Amigo Totoro) e Yoji Yamada (A Balada de Narayama) no cinema, Hiromu Arakawa (Silver Spoon) e Keiichi Hara (Summer Days with Coo) nos quadrinhos, e Yasuhiro Wada (Harvest Moon) também nos videogames.

SEQUÊNCIA DIRETA E ESPIRITUAL
Chegamos então finalmente à análise do jogo de hoje, “Shin-Chan: Shiro and the Coal Town”. Primeiramente é justo eu deixar claro que Kaz Ayabe não esteve envolvido neste projeto, então você poderia se perguntar por que o preâmbulo deste texto fez questão de falar sobre ele e sua obra.
Bem, o primeiro motivo é que o estúdio Millenium Kitchen, de Kaz Ayabe, foi responsável por “Shin-Chan: Me and the Professor on Summer Vacation”, jogo anterior ao “Shiro and the Coal Town”.

O design de “Me and the Professor” segue exatamente a mesma linha que exploramos no preâmbulo, guardando muitas semelhanças com os trabalhos de Kazuhiro. E apesar do novo jogo não ser feito pela Millenium Kitchen, a essência do antecessor segue viva aqui em “Shiro and the Coal Town”.
A sequência adquire uma espécie de status especial onde não é apenas a sequência direta, mas também espiritual, já que carrega sua filosofia de design - a citar, o ciclo de jogabilidade e a estrutura - e a temática que definimos anteriormente como “bucolismo-sertanejo japonês”.
Mas enquanto o predecessor mantinha os pés firmes na realidade, “Shiro and the Coal Town” traz um componente fantástico ao roteiro, onde não só exploramos a pequena cidade onde a família de Shin-chan está morando, mas também uma cidade vizinha misteriosa com toques oníricos, chamada Coal Town.

A arte de Coal Town distingue-se fortemente do ambiente realista da vila de Akita, com traços sinuosos e distorcidos que reforçam a estranheza e o contraste com a vila “Unbent” (trocadilho certamente intencional). Esse aspecto visual levanta algumas questões curiosas sobre a cidade, especialmente quando se leva em conta a forma com que Shin-chan chega nela e como ele faz para retornar.
Não chega a ser tão forte em matéria de fantasia como os trabalhos de Hayao Miyazaki, a exemplo de “A Viagem de Chihiro” e o mais recente “O Garoto e a Garça”, onde os personagens viajam para mundos bizarros, mas nos permite traçar um paralelo claro entre as obras, ainda que de mídias muito diferentes.

Inclusive, um dos maiores destaque de “Shiro and the Coal Town” é sua arte. Os cenários em altíssima qualidade, as transições ilustradas e a fusão com objetos e personagens é de encher os olhos. É daquelas obras cujo visual borra as fronteiras entre desenho animado e videogame, criando aquela sensação de estar interagindo diretamente em um mundo tipicamente pertencente às animações.

Eu não sei você, mas quando a palavra imersão é sacada em uma descrição de uma obra, eu não consigo associá-la obrigatoriamente com fotorrealismo, muito pelo contrário.
Acredito que essa sensação é multifatorial e me sinto privilegiado de não depender de texturas e modelos fidedignos à realidade humana para senti-la. Afinal, é muito comum vermos elogios rasgados às produções que optam por essa direção de arte, enquanto a estilização costumeira de quadrinhos e animações cartunescas muitas vezes são esnobadas ou consideradas de menor qualidade, menos luxuosas.
Se tem um adjetivo que eu acho justíssimo de ser atribuído à “Shiro and the Coal Town” é exatamente “luxuoso”. Isso porque não é só a estética dos cenários e modelos que é absurdamente bem-produzida, mas também todo design de interface e - aqui cabe um destaque especial - o design sonoro.

A atuação de voz, os sons ambientais e todos os efeitos sonoros compostos de fanfarras, mickeymousings e temas gerais de comédia e mistério atuam no mais perfeito uníssono com a arte visual para criar uma verdadeira experiência de luxo.
Mais do que acompanhar, todo o conjunto sonoro é igualmente responsável por não apenas criar as atmosferas cômicas, aventurescas e fantásticas da obra, mas também estabelecer o clima de nostalgia, tranquilidade, cotidiano e pacífico da vida no interior, arrematando o jogador com o efeito bucólico-sertanejo pretendido.
Vale ressaltar também que praticamente todos os aspectos técnicos foram melhorados em relação ao antecessor, exceto na condução da história. Na verdade, se tem algo que pode ser apontado como uma mínima crítica, é que o desenvolvimento da trama em “Shiro and the Coal Town” relega aos seus últimos momentos trabalhar o antagonista da história, deixando a desejar em relação ao desenvolvimento mais constante e consistente no jogo anterior, com um aspecto narrativo muito corrido.

Mas se quer saber, o time da h.a.n.d (Hokkaido Artists' Network and Development) fez um trabalho espetacular nesta sequência, mantendo ao máximo as características que fizeram “Me and the Professor” tão bom. Eu vejo o tratamento e a direção de design do título como uma forma de honrar o trabalho e o legado de Kaz Ayabe no primeiro jogo desta duologia.
Estes não são os primeiros jogos da franquia Shin-Chan, vale lembrar, mas certamente caminham de mãos dadas em diversos aspectos, em especial de game design, o que nos permite separá-los de outras experiências com o icônico personagem. Mas acima de tudo, os títulos estão junto na tarefa de celebrar e homenagear com muito afeto a vida longe dos estresses da cidade grande.

INFANTIL, MAS NÃO APENAS PRA CRIANÇAS
Shin-chan como série é uma obra que já recebeu criticismo no passado por conta das insinuações sexuais de suas piadas, mas tendo jogado "Shiro and the Coal Town" posso deixar claro que a equipe do jogo não explorou esse tipo de conteúdo. Como faço questão de frisar, ele busca sempre a leveza e o resgate das brincadeiras de criança.
Claro, no meio desse saudosismo você encontrará toda a sorte de trocadilhos, piadas e situações cômicas e curiosas que caracterizam positivamente as obras de Shin-Chan. Mas certamente "Shiro and the Coal Town" é um prato cheio para as pessoas que sonham com uma vida pacata, ou que sentem saudades dos tempos mais inocentes, simples e divertidos da infância.
O jogo está disponível para PC e Nintendo Switch, e a versão que recebemos da Neos Corporation para análise foi jogada no Steam Deck. Infelizmente e diferente de seu antecessor, "Shiro and the Coal Town" não possui texto em português. Você pode optar por jogar em japonês, inglês, espanhol, chinês e coreano no PC, ou japonês, inglês, espanhol e alemão no Switch.
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