Tale of Tales: Uma luta constante contra a estética da perfeição — Artigo
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Tale of Tales: Uma luta constante contra a estética da perfeição — Artigo

Atualizado: 1 de out. de 2023


Eu sempre luto contra o "perfeito"
Tela de captura do jogo The Graveyard
Reprodução: Tale of Tales

Texto em vídeo:

Vocês já devem ter me ouvido falar sobre como a simetria e as normas aristotélicas de beleza, natureza e arte semearam um parasita que embrulha esta última, tal qual um casulo apertado, impedindo a sua expansão criativa e humana. Este casulo é chamado, também, de definição estética.


A estética serve a um propósito limitante à arte. Desde as formas de esculturas gregas que definem "perfeição" (que viriam a ser amplamente utilizadas por movimentos fascistas e nazistas) até a adoração da beleza estética, que levaria a traduções de esculturas para carne humana através de procedimentos cirúrgicos, a estética é um parasita que acompanhou a arte em seu crescimento desde muito cedo.


Disability Aesthetics: "Estética da Deficiência" ou "Estética da Incapacidade"
Arno Breker esculpe um retrato de Albert Speer em 1940
Arno Breker esculpe um retrato de Albert Speer em 1940 | Reprodução: Wikipedia

Batizada por Tobin Siebers em seu paper "Disability Aesthetics" (2010), a "estética da deficiência" ou "estética da incapacidade", se preferir, busca provocar os padrões definidores da arte ao evidenciar o paradoxo da busca da arte perfeita em contraste com o longínquo, subliminar e muitas vezes acobertado apreço pela imperfeição.


O paralelo aqui é claro quando falamos de mídias artísticas mais antigas. As descendentes das esculturas gregas, comuns na estética Nazi, se mostram, como o próprio Tobin trouxe (e concordo), vazias substancialmente (ex. Readiness, Arno Breker). Como artistas, a busca pela perfeição historicamente se mostra opressora à liberdade expressiva e sentimental, mas como interlocutores, vemos um valor único na imperfeição, desproporcionalidade e assimetria, proveniente de uma sensibilidade empática e inconsciente. As imperfeições dão vida à obra e tornam-se parte dela.


Como Tobin traz perfeitamente na comparação entre Vênus de Milo (100 AC) e Les Menottes de Cuivre (1931) do surrealista René Magritte (este que aprecio muito pela constante provocação no status quo do imaginário coletivo, tal qual estética), Vênus de Milo é muito apreciada pela sua forma imponente e sua silhueta suave e sutil, mas é lembrada principalmente pelos seus ausentes braços.

Foto da escultura Venus de Milo
Escultura: Venus de Milo | Autor: desconhecido | Foto por: Chosovi

A ausência dos braços da Vênus provoca uma quebra na estética. Como pode uma figura utilizada como parâmetro para beleza feminina não ser "perfeita", ser portadora de um corpo esteticamente quebrado, cicatrizado, ou melhor: esteticamente deficiente? A beleza da Vênus de Milo se torna substancial quando seguida de uma "imperfeição" gerada pelo tempo, ou circunstâncias. Por isso, René cria Les Menottes de Cuivre (1931), retratando a mesma silhueta com o tom azulado nos braços, destacando a sua suposta "imperfeição" estética e tornando-a ainda mais visceral, como se os membros fossem amputados.


Perceber que esse suposto "defeito" é a parte da obra que a torna ainda mais perfeita é essencial. Pois se os braços estivessem na Vênus de Milo até hoje, não passaria de mais uma escultura "perfeita" e replicada tantas vezes sem um pingo de caráter, alma ou essência (como os fac-símiles reproduzem, matando a arte). Se os braços ainda estivessem na Vênus de Milo, ela não seria a Vênus de Milo.

Foto da escultura Les Menottes de Cuivre
Escultura: Les Menottes de Cuivre (1931) | Autor: René Magritte

Essa luta estética pode ser facilmente vista em movimentos pós-modernos. Nós nos rebelamos contra o perfeito, mesmo inconscientemente.


Outras artes como rabisco, pixo e grafite, que usam outras obras como tela (arquiteturas, pinturas etc.), até simples depredações, como evidenciadas pelo Tobin em seu artigo, exercem um papel de rebeldia contra a norma estética, e, na minha opinião, trazem uma camada a mais em qualquer ambiente e/ou arte.


O mesmo pode ser visto em jogos, pelos motivos que explicarei a seguir.


A "estética deficiente" em jogos
Tela de captura do mod de doom para super mario 64
Doom Mod v0.34 para Super Mario 64 PC Port | Autor: p3st

Como interlocutores, a cultura de Mods é o exemplo vivo da revolta inconsciente contra a estética padrão e um fomento à estética deficiente. Quebramos os jogos "perfeitos" para deixá-los ainda melhores em suas imperfeições.


Entretanto, mesmo em obras autorais, a luta estética ainda é recorrente e muito poderosa nos jogos. Aqui, a estética, além de figurativa, se mostra também sinestésica e tátil. Esperamos um modelo de reação aos nossos movimentos, à nossa interação.


Nos jogos em terceira pessoa, ao indicarmos movimento, seja apontando o joystick para frente, apertando o botão indicativo para a direção que queremos movimentar ou um simples apertar de gatilho como pisar num acelerador, esperamos uma resposta imediata e aprendemos que essa resposta é "boa norma" e significativa para o entretenimento. Damos um nome mais bonito para parecer algo real e universal, chamamos isso de "game feel".


Eu sou um fã da teoria do "game feel" e acredito que Steve Swink trouxe um novo degrau para as discussões da mídia. Mas, quando a discussão se transforma em informação, seguimos diretrizes que se moldam em regras, ou melhor, estética, para as sensações em um jogo.


No entanto, quando a ausência dessas sensações é executada com um contexto substancial e político, mostra-se uma afronta direta às mazelas da estética padrão.


iniciativa "Notgames", por Tale of Tales

e a missão de trazer a "Estética da Incapacidade" para a mídia interativa.

banner escrito "make love notgames", retirado do manifesto Over Games, da desenvolvedora Tale of Tales
Reprodução: Tale of Tales

Tale of Tales é uma desenvolvedora indie dos meados dos anos 2000 que fez jogos fora do padrão, dirigida majoritariamente por Auriea Harvey e Michaël Samyn. Representaram um movimento "notgame" que buscava, justamente, se afastar do casulo que definiria jogos nos inícios dos anos 2000. Eles foram massacrados por isso.


Auriea e Michaël acreditavam que jogos não são arte por serem uma necessidade humana, e que videogames não são jogos por estarem imbuídos de um miasma capital que prioriza a retenção de números e vícios à expressão ou necessidade de se entreter. Nesse viés, o estúdio começa o movimento "NotGame" justamente para mostrar o potencial da mídia interativa ao não se restringir às definições capitais de jogos.


Foto de Auriea H. e Michaël S., desenvolvedores da Tale of Tales
Auriea H. e Michaël S. (em ordem de citação)

"Precisamos de uma mídia que seja interativa, uma mídia que possa gerar realidades, uma mídia que não seja linear! Existe algo assim? Sim! Existe algo assim. Mas foi capturado pela indústria de videogames! E está sendo mantido como refém.


O computador nos oferece uma tecnologia incrivelmente versátil que pode nos ajudar a lidar com nossas vidas problemáticas de maneiras inteligentes e belas. No entanto, a indústria de videogames extremamente bem-sucedida se apropriou dessa tecnologia." - Auriea H. e Michaël S.




Seguindo um pós-modernismo depois do modernismo se confortar em um materialismo barato, em que se denomina "normal" e "cânone", Tale of Tales se levanta como uma bandeira em prol de reviver uma arte que está morta.


“Nosso tempo chegou. Um tempo no qual podemos contar qualquer história que queremos contar (até mesmo aquelas sem conflitos ou estruturas de três atos). Um tempo no qual podemos explorar mundos virtuais (sem a necessidade de matar 50 javalis). Um tempo no qual podemos interagir com personagens autônomos (sem precisar enganar suas árvores de diálogo). Um tempo no qual podemos escalar o colosso (sem sermos obrigados a atacá-lo com nossa pequena espada). Um tempo no qual podemos jogar. Sem regras, objetivos, vencer ou perder. Um tempo no qual podemos fazer amor, ‘não jogos*’.” - Auriea H. e Michaël S.

Isso, nada mais é do que a quebra estética. O movimento NotGames teve certo alcance e acredito que influenciou muitos artistas e estúdios. Hoje, me influencia nos jogos que faço, apesar de discordar de alguns pontos deles; o ponto não é a filosofia, mas a revolução e a quebra do status quo.


Tal qual Bennett Foddy, Molle Industria e Ville Kallio, Tale of Tales é um grande ícone na expurgação da praga estética nos jogos e na proclamação de uma nova estética, um modelo que despreza simetrias e perfeição, rompe as cascas grossas da ordem e liberta a arte em uma catarse de sentimentos e sensações sem o mínimo de intenção ou motivo, a Estética da Deficiência.


Se não pudermos mudar o que significa “videogames” e sua atual estética, esta mídia está, de fato, morta. Então precisamos lutar e, como diz Walter Benjamin, “Nossa resposta é a arte política”.


Para mostrar como isso pode ser feito e em prol de espalhar a palavra da Tale of Tales, vou trazer aqui um pouco de minha experiência nessa viagem experimental.


Jogos não são arte e videogames não são jogos

The Graveyard (2005) é esteticamente deficiente.

Tela de captura do jogo The Graveyard
Reprodução: Tale of Tales

Apesar da aparência não ser muito incomum, a experiência de jogar The Graveyard é diferente de qualquer padrão, principalmente para a época de seu lançamento.


Todo o conceito corporal da estética deficiente de Tobin é aplicado sinestesicamente aqui: você controla uma senhora idosa em um cemitério, ela senta em um banco, ouve uma música e sai.


É um jogo entediante, doloroso e nem um pouco intuitivo.


Andar com a senhora é difícil, o ritmo é monótono e não parece ter muita coisa empolgante a partir dali. Tudo que temos como perfeito em um jogo, aqui temos o oposto. Sentar em um banco é uma tarefa difícil, levantar-se e sair é tão chato quanto a entrada. Tal qual a vida dessa senhora, esse jogo é quebrado, monótono, triste e curto.


Mas o que mais me pega nesse jogo é o uso do formato para traduzir a rotina, até de uma forma mórbida. Afinal, uma senhora de idade visitando o cemitério e contando como aquelas pessoas morreram não é nem um pouco habitual, ainda mais quando ela sabe de sua efemeridade e sabe que nessas rotinas, um dia vai ficar naquele cemitério para então não estar mais em lugar nenhum.


Eu vou spoilar aqui, pois acredito que a experiência muda em cada um, mas quando abri novamente o jogo para ver "é só isso mesmo", me surpreendi com a personagem morrendo no meio da música e o jogo simplesmente parando ali.


O conceito de morte em jogos definitivamente não significava um final, muito menos uma morte tão pacata e tão ao acaso. Você não tem controle da morte nesse jogo, tal qual a idosa sabia que não tinha.


O que mais me surpreende é esconder isso através da mecânica de abrir e fechar o jogo... Quantas pessoas realmente abririam The Graveyard pela segunda vez depois de ter uma experiência tão "entediante"?


Mas eles não param por aí. Jogar Fatale, para mim, também foi uma experiência única.


Fatale: Exploring salome (2009)

Você sabe que vai morrer, e não pode fazer nada contra isso.

Tela de captura do jogo Fatale: Exploring Salome, da desenvolvedora Tale of Tales
Reprodução: Tale of Tales

Eu tinha acabado de sair da sessão de terapia cujo tema era "medo". Não sou bom com jogos de terror; na verdade, esses dias mesmo me vi fisicamente incapaz de visitar uma obra do gênero, mesmo que não fosse pesada, mas que para mim foi. Sempre é.


Diante dessas situações, a minha resposta sempre foi fugir. Da mesma forma que não consegui terminar Silent Hill, eu fugi. Em Darkwood, em I am Scared e Devotion, eu fugi.


Falei para a terapeuta que queria mudar isso, esse medo da morte que surgiu de repente, acompanhado de um medo de mudança, de incertezas e de perseguição.


Assim que saí da sessão, comecei Fatale e esse jogo não me deixou fugir.


Entrei sem saber o que esperar e me deparei com um momento daqueles que Tale of Tales consegue alcançar. Mesmo não sendo um jogo propriamente de terror, fiquei aterrorizado ao lidar com a morte. Depois de tentar fugir, me vi sem saída e me rendi ao fim com uma cena sinestesicamente brutal e gloriosa. Em nenhum jogo eu senti a morte como em Fatale.

Tela de captura do jogo Fatale, da desenvolvedora Tale of Tales
Reprodução: Tale of Tales

Depois de não fugir e aceitar, seja lá o que visse, vem um processo de busca, entendimento e, eventualmente, paz. Mesmo que aqui seja uma paz perturbadora.


Fatale é um jogo inteligente e com a alma do estúdio que mostrou, mais uma vez, o poder da mídia interativa e de algo simples e tão comum como "morrer" em um jogo. Mas Tale of Tales fez essa mecânica importar muito mais, quando, ao invés da morte significar o final da obra, ser exatamente o começo dela, ainda mais com essa sensação de falta de controle.


Inclusive, algo que é muito estranho, não é? Jogos, uma mídia interativa, com o mínimo de interatividade possível... Ou, como colocado por eles: “(...) um jogo sobre observar. Ser um espectador interativo.”


Ainda no campo das "brincadeiras" com o formato, o estúdio utiliza um dos conceitos mais primordiais do game design para endossar uma substancia genial em seu jogo The Path (2009): Não existe caminho.


The Path (2009)

É claro que existe um caminho, e você pode seguir ele.

Tela de captura do jogo The Path, da desenvolvedora Tale of Tales
Reprodução: Tale of Tales

Por mais estranho que isso possa parecer, The Path usa a história da Chapeuzinho Vermelho para ilustrar a vontade rebelde dos jogadores em descumprir ordens e explorar tudo à sua volta, menos os caminhos disponíveis.


A analogia funciona ao colocar o jogador na pele de 6 personagens diferentes, cada uma com um conjunto de traumas e memórias que reinterpretam elementos característicos do conto, como o lobo, o lenhador e a casa da avó.


Estamos falando de um jogo "mais comercial" da Tale of Tales e que não deixa de ser diferente de tudo pela simples proposta de não ter recompensa. Como eles dizem, é um slow game que vai tomando forma com o tempo. Enquanto isso, traz temas sensíveis sobre infância e os medos de uma garota andando sozinha em um caminho alternativo pela cidade… aposto que vocês conseguem imaginar alguns dos medos que passei ao jogar, então fica aqui o aviso.


Conclusão
Tela de captura do jogo Sunset, da desenvolvedora Tale of Tales.
Reprodução: Tale of Tales

Todos os jogos que citei têm em sua essência a marca dos NotGames, e é surpreendente como essa filosofia de design surgiu em meados dos anos 2000, quando a mídia e a indústria estavam tão imaturas e completamente embriagadas pelo capital.


Só seria próximo de 2010 que começaríamos a abrir a mídia para novas expressões em menor escala e talvez menos "comerciais". A sensação que eu tenho é que a Tale of Tales chegou muito cedo, quando não merecíamos eles. O resultado: Uma reação profundamente negativa do público gamer, que fez Auriea e Michaël perderem força lentamente. Hoje eles continuam com alguns projetos mais voltados para o VR.


Ocorre que o papel desses desenvolvedores é muito maior do que poderíamos imaginar. Precisamos da Tale of Tales e precisamos da estética deficiente em jogos, porque é isso que vai libertar nossos jogos dos padrões mortos dessa mídia.


Por isso trouxe esse tema aqui. O manifesto não pode morrer e esse vai ser meu jeito de lutar pela quebra estética, não apenas ao fazer jogos substancialmente revolucionários, mas ao te fazer entender o poder da estética em nossos juízos de valor e como precisamos nos livrar disso o quanto antes.


Videogames são arte, mas eles não podem se definir pela estética que enfiaram em nossa garganta.

Pela estética deficiente, pelo manifesto "não jogos" e pelas obras inesquecíveis da Tale of Tales: Joguem, leiam, criem e quebrem esse casulo, comece por você.


Nossa resposta à estética da simetria, é a arte política.




Este texto foi editado e revisado por Gabriel Morais de Oliveira.




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