Astrea prova que a culpa é das estrelas, e seja o que deus quiser — Análise
- Felipe Lins
- 21 de out. de 2024
- 10 min de leitura
Atualizado: 4 de nov. de 2024
Em um passado distante, longínquo e enigmático, o universo de Astrea floresceu sob as bênçãos de uma estrela mística, cujas luzes cintilantes concederam prosperidade a uma civilização vibrante. Os discípulos dessa estrela, conhecidos como os Seis Oráculos, guardaram os dons mágicos que receberam em relicários sagrados chamados Astrariums, selando neles o poder que poderia moldar destinos.
Contudo, a harmonia celestial foi abruptamente interrompida por um evento apocalíptico conhecido como o Cataclismo da Aurora Carmesim. Esse desastre devastador não apenas consumiu o sistema estelar, mas também corrompeu muitos dos seus habitantes, trazendo consigo a ruína e a desolação. Os Oráculos, outrora protetores e guias, foram subjugados pelas forças do caos, e o esplendor da civilização se desvaneceu nas sombras da destruição.
Através das gerações, os descendentes dos discípulos, guiados pela memória do que um dia foi, descobriram os relicários deixados para trás pelos Oráculos. Com corações destemidos e a chama da esperança acesa, eles embarcam em uma jornada épica para retomar a batalha e desvendar os mistérios que cercam a origem do Cataclismo...
Esta é a introdução narrativa de Astrea: Six Sided Oracles, jogo de dados com elementos roguelike cuja temática explora uma arte original baseada em astrologia, que eu gostaria de analisar neste texto. Mas antes eu quero falar de uma outra coisa.
"Alea jacta est"
Quando eu era pequeno eu lia essas palavras em diferentes lugares e pelo contexto inferia seu significado, algo como “seja o que Deus quiser”. Na linguagem popular, é uma expressão utilizada quando os fatores determinantes de um resultado já foram realizados, restando apenas revelá-los ou descobri-los.
O primeiro lugar que me recordo de ver a frase foi nos quadrinhos de Astérix, dos franceses Goscinny e Uderzo, em uma cena em que um soldado romano admitia sua incapacidade de realizar qualquer tipo de ação em virtude dos eventos que lhe fugiam do controle.
Com o tempo percebi que mais do que um significado impactante, "Alea Jacta Est" era um jargão bastante comum em obras da cultura pop. Muito mais do que uma mera frase atribuída a romanos em séries históricas de forma dramática, ela encapsula de forma solene uma declaração sobre a inevitabilidade do futuro.
Jogos como Assassin’s Creed II, por exemplo, e Civilization VI, usam a frase especificamente em contextos referenciando discursos de Júlio César, o lendário imperador romano. A frase em si não é de autoria dele, mas ficou muito forte a imagem de César a utilizando no imaginário popular, especialmente graças aos quadrinhos.
Dizem que teria César, ao cruzar o rio Rubicão em campanha, evocando uma crença no destino inescapável após o lançamento de dados divinatórios, empregado as famosas palavras para exclamar que havia feito tudo que estava em seu alcance e portanto cabia agora aos deuses agirem.
Contudo, mais forte que a imagem de César, simbolicamente falando, é a própria imagem de dados sendo lançados para representar o conceito da frase, afinal, podemos traduzir do latim alea jacta est como, literalmente, “os dados estão lançados”. Essa imagem é diretamente ligada com a prática da adivinhação e de jogos de azar.
Historicamente, a arte da adivinhação mística, ou divinação, foi usada por inúmeras civilizações como forma de se comunicar com os deuses e assim obter uma espécie de guia do futuro que as aguardava. O lançamento de dados era usado em Roma como forma de obter informações diretamente com os deuses, acreditando que o resultado do lançamento seria influenciado por estes.
Alea jacta est, para todos os efeitos, é a expressão máxima de que a vontade dos deuses deverá ser feita, e a esperança de que um futuro próspero seja esta vontade. Vale lembrar que o panteão romano incluía, literalmente, planetas e astros. O que, convenientemente, nos traz para bem próximo da ambientação de Astrea, em especial por conta da temática astral do jogo, que remete à simbologia greco-romana ligada à divinação e à astrologia.
Tematicamente falando, Astrea vincula o conceito teológico de astros-reis com a prática do lançamento de dados, entrelaçando conceitualmente seu gameplay com a sua ambientação e direção de arte. A proposta do jogo é ser um dice-builder, gênero que envolve a construção de uma espécie de “baralho” de dados, conhecido em inglês como “dice pool”, mas que podemos entender pro analogia como “banco de dados”, por mais que não se confunda com o termo empregado na computação.
A estrutura básica do jogo é de roguelike, como definido pelos próprios criadores, que aqui em Astrea se traduz basicamente como o fato de cada incursão do jogador ser única e regida pela aleatoriedade. Alea jacta est, por acaso, é perfeita para definir essa proposta.
A título de curiosidade, o termo roguelike é algo tipicamente associado a jogos eletrônicos. No meio dos jogos analógicos, como jogos de tabuleiro e de cartas, a terminologia de game design não costuma compartilhar com os videogames diversos termos específicos. Isso acontece porque a natureza dos jogos analógicos precede e muito a criação dos videogames, e muitas das convenções nesse meio existem com um outro nome, ou sequer existem.
aleatoriedade como mecânica basilar
A ideia de aleatoriedade, por exemplo, é algo que rege quase todo tipo de design nos jogos analógicos, e o caráter único de cada “partida” torna desnecessária a utilização de um termo de origem posterior como roguelike para definir essa característica.
Jogos com dados, por acaso, são um dos maiores representantes da geração aleatória de resultados, o famoso (ou infame) “RNG” (Random Number Generator), mecânica que confere imprevisibilidade e a necessidade do jogador se adaptar para lidar com os resultados não favoráveis, além de tirar de seu controle o resultado direto das decisões.
É uma mecânica que não só faz parte de quase todos os jogos de alguma forma, como também, quando bem usada, premia as ações intencionais dos jogadores com uma imensa dose de catarse, mas que também se certifica de garantir que nem tudo saia exatamente como planejado. A estratégia precisa sempre levar em consideração essa imprevisibilidade e considerar planos de contingência, adicionando mais camadas às tomadas de decisão.
Por isso mesmo fazer o design de jogos que envolvem resultados aleatórios é sempre complexo. Usar apenas numerais crus torna as possibilidades muito diversas e genéricas, mas é aí que entram designs inteligentes e jogos com a confecção de dados especiais, com resultados mais controlados e informações mais visuais ao invés de numéricas.
A gente pode pegar como exemplo jogos como War, que usam números crus limitados a seis resultados por dado (dado de seis lados) e pareiam os resultados de jogadas de ataque contra dados de defesa. É uma forma inteligente do design lidar com números crus, reduzindo-os a confrontos diretos onde tem apenas um vencedor e assim controlar melhor as possibilidades. Mas também temos a existência de ideias como “dados de aventura” e “dados customizados”.
Dados de Aventura são usados em jogos como Fiasco e Shadowrun, criando um banco de dados a partir do resultados, determinando o desenrolar da história e as interações entre os personagens usando os números desse resultado. Muito comum em RPGs-solo.
Dados Customizados são usados em jogos como o antiquíssimo Hero Quest (1989) e também no Astrea: Six-Sided Oracles. Eles utilizam dados com faces personalizadas que podem ter efeitos diferentes, permitindo que os jogadores modifiquem ou criem suas próprias combinações e estratégias de acordo com o resultado, semelhante a escolher cartas em um baralho, mas com a possibilidade de rolar faces com efeitos negativos que terão de ser gerenciados.
Inclusive, me permita uma pequena digressão. Estudar sobre esse assunto de design, em especial dados customizados, me transporta diretamente para minha quarta série do ensino fundamental, onde eu conheci por intermédio de um ex-amigo o jogo Hero Quest e jogávamos no intervalo e no final da aula um pouco por vez, quase nunca terminando uma partida.
Eu tenho memórias muito mágicas desse jogo, e sempre quis jogar a campanha dele por completo, mas infelizmente nunca consegui parceiros de jogo dispostos a encarar o desafio, especialmente pela necessidade de jogá-lo no Tabletop Simulator, já que o jogo físico é raro e caro, muito caro.
Mas pera, ex-amigo? É! (risos) Além dele ter se mudado de colégio, anos depois encontrei os pais dele num restaurante e me reaproximei da família, além de coincidentemente ele ter começado a namorar uma amiga da minha esposa. Pois qual não foi minha surpresa ao descobrir que o babaca se tornou um fundamentalista religioso ultramachista e ciumento, que por pouco não agrediu a namorada por ciúmes na época...babado forte! Mas fofocas à parte, de volta à análise.
Nos últimos anos vimos um despontar de jogos eletrônicos indies explorando o gênero de deckbuilding, onde você começa com poucas cartas e vai adicionando novas à medida que avança. Slay the Spire, por exemplo, é um que se tornou bastante popular, e é um jogo com estrutura muito similar à Astrea, mas também temos Card Hunter, título que mistura o movimento tático de RPGs de mesa com a mecânica de deckbuilding, criando uma proposta igualmente distinta e cheia de personalidade.
Entretanto quando falamos de dicebuilding talvez a representatividade no meio eletrônico não seja tão vasta quanto deckbuilding. No meio analógico temos jogos como Catan Dice, Zombiedice e um dos mais robustos que já conheci, Quarriors, para representar o gênero, dentre tantos outros que desconheço.
Já no meio digital eu conheço somente Dicey Dungeons que trabalha com algo apenas similar, uma vez que ele explora o conceito de uma forma super fora da caixa. Terry Cavanagh, seu designer, é famoso por subverter e mixar gêneros, então Dicey Dungeons não é exatamente um representante do gênero dicebuilding que faça jus a se tornar referência.
É nesse ambiente pouco explorado que Astrea: Six-Sided Oracles faz seu nome.
A beleza dos dados e das estrelas
O primeiro aspecto a fazer contato com o jogador é, quase sempre, a apresentação. Com uma arte lindíssima com paleta de poucas cores, porém vibrantes e luminosas, Astrea brinca com pinturas de afrescos numa pegada mais tribal, evocando elementos de astrologia e símbolos com traços fortes e grossos.
Ela se caracteriza por uma estética cósmica e abstrata, com forte inspiração em temas celestiais e místicos, fazendo uso de figuras geométricas, linhas abstratas e efeitos de luz e sombra que trabalham a temática da dualidade entre a Purificação e a Corrupção – conceitos centrais da narrativa e do design de forma geral.
Temos seis personagens jogáveis com uma bela caracterização que é minimalista em alguns aspectos, mas quebra com adornos de símbolos astrológicos e relíquias, cada um com uma habilidade única e outras passivas chamadas de "Virtude".
Eles representam os Oráculos de cada planeta e civilização, e suas Virtudes são peças-chave no gameplay. A Virtude principal pode ser usada uma vez por turno, enquanto as outras são ativadas com o aumento da Corrupção, conforme indicado por um medidor, utilizando um sistema de risco e recompensa a ser bem conduzido pelo jogador, uma vez que estamos lidando com um jogo onde erros podem custar a partida inteira.
Seguindo sua temática dualista de pureza e degeneração, ele trabalha com esses dois conceitos na forma de energia positiva e energia negativa. A positiva, chamada de Purificação, cura o protagonista e causa dano nos inimigos. A negativa, Corrupção, faz o oposto.
Os jogadores rolam dados especiais a cada turno, que têm diferentes efeitos dependendo de seu tipo. Dados podem ser do tipo Seguro (fraco, sem Corrupção), Balanceado (poder moderado, com Purificação e Corrupção), Arriscado (alto poder, grandes riscos) e Épico (raros, efeitos poderosos). Inimigos podem adicionar Dados de Ferida, que são majoritariamente Corruptos, além de usar seus próprios dados para causar efeitos negativos (debuffs) e positivos.
O que eu gostei desse sistema é que ele aparenta ser simples, mas a equipe conseguiu desenvolver uma variedade considerável de efeitos positivos e negativos e resultados que não realizam a simples cura ou apenas causam dano direto ao oponente.
Uma vasta gama de efeitos de proteção e apoio tornam muito mais complexo o desenrolar do jogo, oferecendo diversas possibilidades de construir estratégias diferentes não só para variar e evitar o cansaço em cada incursão, mas também para permitir ao jogador tentar outras maneiras de enfrentar um desafio que ele tenha falhado.
Por ter o design de roguelike, uma vez que o jogador falhe, ele perde o progresso, acabando a partida e tendo de recomeçar do zero. Mas mesmo que ele não falhe, a incursão tem três atos e encerra de qualquer maneira com uma conclusão de jogo, pontuação e ganho de experiência.
Esse aspecto estrutural em conjunto com o design das mecânicas confere ao jogo um forte incentivo ao replay, além de aliviar qualquer tipo de pressão para que o jogo seja finalizado logo, já que a proposta não inclui um roteiro com uma trama super envolvente e dinâmica que instigue o jogador a querer terminá-la.
Muito pelo contrário, Astrea trabalha com o mesmo tipo de narrativa que embala diversos jogos do gênero. Ela serve apenas de pano de fundo, trabalhando temáticas muito mais que instigando um determinado interesse em seu desenrolar. É um tipo de design muito comum que prioriza a jogabilidade acima da história, como vemos em inúmeros jogos da Nintendo, por exemplo. Mais que isso, é um ciclo que reflete as partidas que jogamos em jogos reais analógicos, com início, meio e fim.
Mas ao mesmo tempo Astrea é difícil de deixar de lado e parar de jogar. É um design que convida a jogar mais uma vez, experimentar um novo conjunto de dados e arriscar uma estratégia diferente. Uma fórmula já conhecida e eficiente em prender o jogador com suas mecânicas e que, mesmo oferecendo um objetivo final, seduz pra uma nova incursão, tal qual um bom jogo analógico como Paciência, pro exemplo, e tantos outros fazem.
As temáticas de poderes divinos e de destino se interlaçam caprichosamente entre os designs artísticos e de jogo, criando uma obra concisa, coerente em todos os seus aspectos e com um loop de gameplay que explora perfeitamente seus elementos para conferir horas e horas de jogo. Monte sua estratégia e se adapte ao seu destino, pois a vontade dos astros é definitiva.
Aqui, de fato, a culpa é das estrelas.
Astrea: Six Sided Oracles está disponível em todas as plataformas.
Agradecemos gentilmente a Akupara Games pelo envio de chave de Astrea: Six-Sided Oracles para análise.
Texto editado por Gabriel Morais de Oliveira (@GabrielHyliano).
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