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Au Revoir e a Linha Tênue entre o Eu e a Tecnologia — Análise | Entrevista

Foto do escritor: EfêmeroEfêmero
Capa de Au Revoir | Reprodução: Invisible Studio
Capa de Au Revoir | Reprodução: Invisible Studio

Desde sua primeira cena, Au Revoir captura a atenção com uma estética cyberpunk que, embora familiar, carrega nuances próprias. Um céu permanentemente coberto por uma névoa luminescente de neon reflete o dilema central do jogo: o custo da imortalidade. A trilha sonora, composta por tons eletrônicos melancólicos e batidas pulsantes, acompanha o jogador enquanto ele navega por ruas cheias de histórias e escombros de um futuro em decadência. Situado em 2071, o jogo não se limita a apresentar um mundo futurista; ele o utiliza como uma lente para examinar questões contemporâneas sobre desigualdade, tecnologia e identidade.


Cada canto desse universo parece gritar sobre o peso das escolhas humanas, tanto as do jogador quanto as que moldaram esse mundo ficcional e a partir do momento em que o jogador assume o controle, é confrontado com um universo onde a ética e a moralidade são questionadas constantemente. Como Michel Foucault sugere em Vigiar e Punir, "os sistemas de poder se perpetuam ao moldar a percepção da realidade". Au Revoir brinca com essa ideia ao colocar o jogador em um sistema onde a imortalidade é um privilégio para poucos, e a morte, uma consequência da exclusão social.


Au Revoir se apresenta como uma complexa obra de ficção especulativa que reimagina o cyberpunk com uma sensibilidade narrativa e filosófica singular. Para Leonardo André Pedroso e Osny Buzzo Junior, dois dos criadores do jogo, a inspiração veio principalmente de Blade Runner, com uma influência marcante do jogo point and click de 1997. Altered Carbon também foi uma grande referência, principalmente na construção do roteiro e dos cenários, ajudando a consolidar o tom da obra.


Além dessas influências óbvias, a obra flerta com conceitos sociológicos presentes em autores como Zygmunt Bauman, que discute em Modernidade Líquida como as estruturas sociais se tornam efêmeras e voláteis, assim como as identidades dentro do jogo, que podem ser alteradas e transferidas conforme a necessidade. Em um mundo onde a identidade não é fixa, mas sim um recurso manipulável, a humanidade perde um de seus pilares fundamentais.


Criando um Mundo com Recursos Limitados
Au Revoir | Reprodução: Invisible Studio
Au Revoir | Reprodução: Invisible Studio

O jogo foi desenvolvido dentro de um contexto acadêmico e segundo a equipe o processo foi relativamente tranquilo, com bastante apoio institucional e participação em eventos. No entanto, os desafios não foram poucos, especialmente na busca por artistas e modeladores. A falta de recursos forçou o uso de assets prontos em uma escala maior do que o desejado, impactando algumas das decisões criativas ao longo do desenvolvimento. De acordo com os desenvolvedores, a equipe tinha muitas ideias de mecânicas e cenários, mas o tempo de dedicação era restrito, pois o projeto foi conduzido paralelamente à graduação e ao trabalho de período integral dos envolvidos.


A prioridade era lançar o jogo dentro do tempo disponível, e o crescimento do conteúdo demandava um investimento de tempo considerável. Segundo Osny, cada mês extra de desenvolvimento refletia em aproximadamente mais 20 minutos de jogo, a curta duração do jogo, por exemplo, não foi uma escolha criativa, mas uma limitação imposta pelas circunstâncias. Ainda assim, o escopo da história foi pensado para se encaixar em uma missão única do protagonista como Sentinela, permitindo que a narrativa permanecesse coesa e focada.


Cada ambiente conta uma história, desde os arranha-céus que tocam o céu poluído até os becos úmidos repletos de vida marginalizada, remetendo aos cenários decadentes e iluminados por neon de Blade Runner e às reflexões existenciais de Ghost in the Shell. A essência do jogo ecoa da exploração filosófica de Altered Carbon, onde a transferência de consciência e a imortalidade tecnológica desafiam nossas ideias de identidade e humanidade. No entanto, como explicou Léo, a história não deveria ser sobre o Cérebro Sintético ou a Au Revoir Ltd., e nem mesmo sobre o protagonista: o cerne da narrativa era a perda da humanidade e a desconexão do ser humano com a morte, que é algo inerentemente humano.


O filósofo Martin Heidegger sugere que a morte é um elemento essencial da experiência humana, pois nos lembra de nossa finitude e confere sentido às nossas escolhas. Em um mundo onde a morte pode ser contornada, como em Au Revoir, essa noção se dissolve, e o significado da vida se torna incerto. Esse dilema existencial permeia toda a jornada do protagonista e se manifesta em cada detalhe do universo do jogo.



NARRATIVA, Sons e Luzes: A Linguagem Oculta da Cidade
Au Revoir | Reprodução: Invisible Studio
Au Revoir | Reprodução: Invisible Studio

Essa desconstrução da identidade também guiou as mecânicas do jogo. A sincronização de ondas cerebrais, por exemplo, surgiu da ideia de que o jogador está baixando um cérebro e precisa alinhar suas ondas para que a transferência seja bem-sucedida. O conceito foi aprovado apenas após ser testado e demonstrar ser uma mecânica divertida e imersiva. Para a equipe, cada elemento do jogo deveria apoiar a narrativa de alguma forma, caso contrário, era descartado.


A filosofia do jogo se reflete em questões levantadas durante o desenvolvimento, como: Quem tem acesso a essa tecnologia? Como essa empresa surgiu? Quais impactos sociais ela gera? O que acontece se memórias forem alteradas ou clonadas? Embora Au Revoir não forneça respostas definitivas, ele convida o jogador a refletir sobre essas possibilidades. Como Léo mencionou, toda obra cyberpunk serve, em algum nível, como um alerta, pois expõe um mundo onde os humanos começam a se desconectar de sua essência devido a avanços tecnológicos e interesses corporativos.


Logo, a atmosfera do jogo foi cuidadosamente trabalhada para reforçar essa desconexão. Os sintetizadores dos anos 80 e as composições inspiradas em Vangelis foram escolhas óbvias para criar a identidade sonora do jogo. Como explica Osny, a trilha não deveria apenas acompanhar a ambientação, mas dar a sensação de que a própria cidade estava "conversando" com o jogador, com prédios funcionando como sintetizadores, o lixo nas ruas se tornando os baixos e a beleza escondida na decadência se manifestando na melodia. A paisagem sonora foi projetada para ser invasiva, com alto-falantes de propagandas ecoando dentro dos ambientes, tornando impossível escapar completamente da opressão urbana.


O jogo levanta questionamentos que ecoam além da tela, sobre identidade, memória e o impacto da tecnologia na vida humana e ao longo da experiência, o jogador é levado a refletir sobre o que define a consciência e como as relações humanas são moldadas quando a morte deixa de ser um limite absoluto. Como Baudrillard argumenta em Simulacros e Simulação, a substituição do real pelo hiper-real pode levar a um mundo onde as distinções entre original e cópia se tornam irrelevantes. Au Revoir transita por esse conceito, ao apresentar um universo onde a própria identidade pode ser replicada, questionando se ainda há algo genuíno no indivíduo.


Reflexões Finais
Au Revoir | Reprodução: Invisible Studio
Au Revoir | Reprodução: Invisible Studio

No fim, Au Revoir deixa uma marca singular, oferecendo uma experiência que não apenas homenageia o gênero, mas o desafia a evoluir. Ao caminhar pelas ruas iluminadas de neon e atravessar as mentes fragmentadas do jogo, o jogador é instigado a explorar não apenas um futuro distópico, mas também a natureza efêmera da humanidade em um mundo cada vez mais artificial. Para os criadores, não há uma única interpretação correta; a ideia é que cada jogador saia com algo único da experiência, seja pelo som, pelos cenários ou pelos dilemas filosóficos que surgem ao longo da jornada.


Além disso, a jornada do protagonista funciona como um reflexo da sociedade retratada no jogo. Tristan, como Sentinela, executa sua função sem questionar no início, mas é progressivamente forçado a confrontar as implicações morais de seu trabalho. Esse dilema ressoa com o próprio jogador, que também é colocado na posição de decidir entre seguir o sistema ou desafiá-lo. A estrutura narrativa, que culmina em múltiplos finais, reforça essa ideia de que não há uma única verdade, mas sim diferentes perspectivas e consequências para cada escolha.


Se a imortalidade é o preço, talvez a pergunta crucial seja: estamos preparados para perder o que nos torna humanos? Au Revoir se posiciona como um espelho perturbador, refletindo nossas ambições mais profundas e nossas inseguranças mais sombrias. No fim da experiência, quando a tela escurece e a trilha sonora se esvai, resta apenas uma dúvida inevitável: se tivéssemos essa tecnologia ao nosso alcance, escolheríamos usá-la?


Como o próprio jogo sugere em suas mecânicas e narrativas, não é apenas a busca pela imortalidade que importa, mas as escolhas feitas ao longo do caminho. Em uma sociedade que já testemunha a comercialização de quase tudo, somos desafiados a questionar até que ponto somos capazes de abrir mão de nossa essência por uma promessa ilusória de eternidade.


Texto editado e revisado por Maya Souza (@ShinMayanese).



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