top of page

Sobre a Sagrada Travesti do Evangelho, Cavaleiros Templários e o atributo da criação — Análise | Crítica

Foto do escritor: Maya SouzaMaya Souza
Sagrada Travesti do Evangelho | Reprodução: Júlia F. Cândida
Sagrada Travesti do Evangelho | Reprodução: Júlia F. Cândida

Nunca fui batizada, meu pai e minha mãe nunca quiseram e a insistência da minha avó não importava de verdade. Minha inserção em alguma Igreja e meu batismo dependiam exclusivamente da minha própria vontade quando eu crescesse. Então, cresci. Continuei não batizada. Diferente da maioria dos meus amigos (e primos), não frequentei catequese, missas nem nada do tipo. Meus pés só pisavam em Igrejas ou Catedrais em casamentos de parentes. Acha tudo isso bem bonito, até, mas não queria investir.


Eu queria escapar do mundo religioso? Não, não de verdade, mas não escaparia nem se quisesse. Visitar minha avó materna e encontrar uma das minhas tias era equivalente escutar louvores todo dia, toda hora. Aos 10 anos de idade, ganhei uma Bíblia em quadrinhos de presente de aniversário, aos onze, uma Bíblia Sagrada per se. Num Natal, minha avó me deu um colar com a imagem de Virgem Maria.


No início dos meus 12 anos, fui uma das pessoas fundadoras de um Capítulo de um grupo de jovens exclusivamente masculino que carrega consigo o sobrenome do último Grão-Mestre dos Cavaleiros Templários, Jaqcques de Molay. Eu não sabia quem era esse cara e nunca havia ouvido falar dessa organização, mas aceitei entrar graças a sua proximidade aos Grupos Escoteiros, que também fiz parte.


Quando pude finalmente abrir os olhos e enxergar a Sala Capitular, dei de cara com um altar possuindo uma Bíblia aberta em seu centro. Eles não são de fato um grupo religioso, mas ainda são construídos sobre valores cristãos, especialmente católicos. O grupo se declara laico: se houverem pessoas de outras religiões presentes durante as cerimônias, seus Livros Sagrados deveriam ser colocados sob o altar. Nunca vi isso acontecer. Não existiam perguntas sobre as crenças alheais e não havia muito espaço nem no altar, nem na própria ritualística.


Alguns de seus ideais se firmaram a partir de versões romantizadas da história de militares religiosos e grande parte das suas cerimônias reforçam a binaridade de gênero e as posições sociais impostas a homens e mulheres. Talvez, só talvez, isso seja consequência de um conservadorismo quanto a possibilidade da atualização de seus rituais e normas, presas a mais de um século, criada por homens ricos que viveram a primeira guerra mundial nos Estados Unidos.


Meu primeiro cargo dentro desse grupo foi o "Capelão". Em todas as reuniões, em todos os sábados, eu desceria até o altar, colocaria minhas mãos sob a Bíblia Sagrada, e recitaria uma oração. Assim o fiz durante todo o meu primeiro ano. E mais uma vez, por mais seis meses, tempos depois. Eu, que nunca fui batizada, que nunca frequentei Igrejas, orava em (quase) todos os fins de semana. Minha presença e estudo dentro da Ordem fizeram crescer em mim um pequeno interesse em, finalmente, ir atrás do batismo e conhecer de fato alguma religião.

Brasão da Ordem DeMolay
Brasão da Ordem DeMolay

Eventualmente, conheci pessoas e engatei em namoricos, os dois primeiros com pessoas que viviam em contextos e famílias muito mais religiosas que eu. Tudo foi tranquilo até o dia que a minha primeira sogra, evangélica, descobriu com quem eu andava. Aquela pessoa que se apresentou a mim de forma amigável fez da minha vida um inferno. Com certa frequência, escutava que eu e meu pai éramos filhos do próprio diabo, que eu não deveria existir e que a vida da filha dela estaria melhor sem mim por perto. Esse evento cortou aquele interesse que eu tinha desenvolvido e o substituiu por nojo.


No segundo relacionamento, com a filha de uma família católica, aquela vontade foi reacendida. Evitei falar sobre o grupo que eu fazia parte por medo, mas a descoberta foi inevitável. Eles não apenas aceitaram, como tiveram interesse em conhecer o mundo que eu vivia, assim como me guiaram com toda a paciência do mundo com todas as minhas dúvidas e interesses quanto ao cristianismo. Minha relação com essa família foi, talvez, um dos contatos mais "profundos" que tive com uma religião, e a mais pacífica.


Um dia, acompanhei a minha namorada da época num retiro, e tudo isso foi por água a baixo. Tive que ficar horas escutando um missionário falar asneiras muito, muito violentas. Negação da existência de pessoas trans, em ênfase especial em travestis, e tratamento de gays, lésbicas e bissexuais como pessoas doentes que necessitavam de cura e salvação, tudo isso enquanto colocava o povo pra entrar dentro de sacolas de lixo.


Eu ainda não sabia que era bissexual e trans, não sabia sequer que já estava me questionando, mas aquilo pareceu direcionado a mim, foi como uma facada. Depois que a garota e eu terminamos, o meu contato com religião voltou a ser apenas na Ordem DeMolay, e assim seguiu até que eu me afastasse. No fim, independente do quão importantes essas lembranças sejam, todos esses ciclos acabaram. Desde que descobri quem sou, esse mundo pareceu cortar os seus últimos laços comigo.


A segurança que um dia encontrei dentro de um ambiente conservador e hostil desapareceu. O monstro descrito pela primeira sogra agora não era visto apenas por ela, mas pela maioria das pessoas ao meu redor. Esse monstro não existia mais pela minha presença dentro de uma organização juvenil, mas por quem eu sou. A violência declarada contra mim cresceu. O jovem garotinho interessado na fé não existe mais. Ele está morto. Eu, hoje, vivo num mundo em que travesti morre cedo.


Considerando tudo o que contei, gostaria que soubesse que "Maya" é uma pessoa que a eu do passado rejeitava. Os meus questionamentos quanto a minha identidade são muito antigos e estiveram muito, muito presentes durante a minha busca por uma fé. Durante aquele momento, eu acreditava que me tornar "Maya" me afastaria do que eu precisava, no caso, o que eu achava que precisava.

Sagrada Travesti do Evangelho | Reprodução: Júlia F. Cândida
Sagrada Travesti do Evangelho | Reprodução: Júlia F. Cândida

Felizmente, durante todo o meu processo de questionamento e começo de transição, conheci e me aproximei de pessoas que me permitiram ser quem eu realmente era, e me apresentaram a um mundo que eu de fato pertencia. Criar amizades também é um ato de autoconhecimento, e eu não seria ninguém sem gente como Isabella, Elise, Kayle, Mar, Midas, Lani, Mari e outras que já citei várias e várias vezes em artigos anteriores. Por um acaso, uma das pessoas mais importantes para a vida que construo durante o meu processo de transição é Júlia F. Cândida, autora de um dos capítulos do livro Gender Euphoria — especificamente The Euphoria That Lies in Revolt: Loving Myself While Living in Brazil (A Euforia Presente na Revolta: Amando a Mim Mesma Enquanto Vivo no Brasil) —, namorada da redatora Mari Maciota, e também por um acaso, diretora de Sagrada Travesti do Evangelho, um curta-metragem que narra uma história sobre, mas não apenas, identidade de gênero e religião.


A existência desse filme é um milagre, seja pela sua produção conturbada e afetada pela pandemia de covid-19, quanto por ser um de curta-metragem brasileiro e independente escrito, produzido e dirigido por uma pessoa trans. Esse foi o TCC da Júlia, nascido do desejo de apresentar ao público um pouco da experiência religiosa sob a visão de pessoas LGBTQIA+, comumente traumatizadas.


Estamos diante de um pedaço da vida de Manuela, uma travesti atormentada por pesadelos de morte. Marcada pelo abandono daqueles que a prometeram paz, ela está certa de que vai direto para o inferno por ser quem é, por contrariar as normas sociais apenas por existir. Manu, assim como a diretora do curta, monta filmes! Não é claro se ela está produzindo um documentário ou o próprio Sagrada Travesti do Evangelho, mas no fim de todo, ela está narrando a própria história.


Temos poucos diálogos durante os quase 20 minutos. Quando não estamos acompanhadas pelo silêncio, Manuela conversa diretamente com o espectador por meio de uma narração em off, expressa como o roteiro que ela tenta escrever, expondo os seus maiores medos. Ao mesmo tempo, mergulhamos em cenas abstratas, melancólicas e às vezes desconfortáveis que conectam as suas emoções. Algumas dessas cenas são arquivos antigos de ultrassons, outras, gravadas em 480p por uma Cybershot. São imagens embaçadas e pouco claras, assim como a memória, assim como o medo.

Sagrada Travesti do Evangelho | Reprodução: Júlia F. Cândida
Sagrada Travesti do Evangelho | Reprodução: Júlia F. Cândida

Assistimos uma boneca da Madoka Kaname guardando pílulas hormonais com uma de suas mãos posicionada sob a cabeça de uma estátua de Virgem Maria, posta no lado oposto da mesma mesa, enquanto Manuela morde o fruto proibido ao assistir entrevistas de pessoas trans falando sobre Deus, é algo meio lindo. Uma das pessoas entrevistadas, Mariana, cita uma comparação feita por Victor Hugo para estabelecer sua relação com o sagrado.


Deus é um Jardineiro, nós, os humanos, somos meras formigas vivendo no jardim que ele mantém. Dentro do grupo de formigas, algumas imploram por ajuda. Os insetos são minúsculos quando comparados ao jardim, que também precisa de cuidados. O jardineiro ajudaria as formigas? Vocês, na posição do jardineiro, ajudariam as formigas? Mari não acha que ele faria alguma coisa, eu concordo.


Se somos feitas pela imagem e semelhança do Jardineiro, do Grande Arquiteto do Universo, de Deus, também somos capazes de criar. Para o bem ou para o mal, a humanidade cultiva o seu próprio jardim desde que nasceu, num mundo verde, vivo para além de nós, erguemos sociedades e culturas, descobrimos mais cores e formas, exploramos o amor, celebramos arte, e criamos vida. Deus nos deu o atributo da criação e nós gozamos com isso.


Somos, então, capazes de nascermos de novo se quisermos? Contrariarmos aquilo tido por verdade, e moldarmos a nossa própria alma, reconstruirmos o corpo a nossa vontade? Se temos o atributo da criação, a recomposição é nossa por direito, é sagrada. Se Deus existe, se a Criação existe, se a Liberdade existe, estamos distantes do estático e do binário. Se Deus não existe, nós ainda criamos, e talvez, sejamos ainda mais livres. Não há nada mais humano que darmos vida a nós mesmas, e às vezes, isso nasce com a produção de um filme, um joguinho, ou mesmo um artigo textual.


Manuela, como uma travesti — identidade que, sob olhos latinos, explora a feminilidade a partir da não-binariedade —, protagoniza um filme intimista que explora que explora múltiplos gêneros audiovisuais, montado por uma equipe recheada de pessoas LGBTQIA+, com suas histórias, traumas e fé expostas em câmera. Quando Manuela constrói o próprio documentário, monta o seu filme e conta uma história, ela recria a si mesma, ela expressa o divino. Sagrada Travesti do Evangelho é sobre nós, todas nós.



Já pensou em fazer parte do no nosso grupo do Discord? Lá temos vários eventos, materiais de estudo e uma comunidade incrível esperando por você. É só clicar aqui!


Siga o Game Design Hub nas redes sociais!

128 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page