"Chorar por mortos que você nunca viu. De quem é essa tarefa?"
Em janeiro de 2023 eu chorei.
Chorei pelo meu avô, Sebastião, que faleceu. Morreu por não conseguir voltar de uma cirurgia para desobstruir as artérias do coração, poucos dias depois de enfartar.
Mas não chorei por comoção, ou por tristeza. Chorei de raiva, porque queria ter tido um avô como todas as outras crianças tiveram. Alguém que não batesse na mulher, desprezasse os meus pais e afastasse todas as pessoas da família com seu jeito ríspido. Alguém por quem não tenho nenhuma boa lembrança.
Também chorei pela minha mãe, que viveu uma vida inteira de sofrimento e acreditou que as negações dos atos vis e as palavras de amor nos últimos momentos de vida de alguma forma conferiram ao seu pai algum tipo de salvação.
Lembrei amarguradamente deste episódio que aconteceu comigo pois I Did Not Buy This Ticket usa como metáfora justamente o ato de chorar (ou não) pelos mortos. Nesta visual novel brasileira, curtíssima e de atmosfera sombria, interpretamos o papel de Candelária, uma carpideira traumatizada que tem como “hobby” chorar por falecidos desconhecidos, e que aproveita as viagens entre um cliente e outro para dormir no ônibus, pois também sofre de insônia.
Para quem não sabe, um carpideiro é aquele a quem se contrata para atuar chorando por um falecido. Dos poucos casos em que se ouve falar das suas aparições, estas geralmente ocorrem em velórios onde ninguém provavelmente irá chorar por quem morreu.
Os motivos pelo qual nossa personagem se rende a essa profissão nada bem vista se dão por conta de uma experiência traumática que sofrera na adolescência. Sua mãe era uma pessoa extremamente ruim, manipuladora, que a tratava muito mal, e que ainda por cima morreu discutindo com ela no leito do hospital. Mesmo assim, durante o velório, Candelária chora pela morte da mãe, cujo motivo fica subjetivo ao jogador entender já que nas suas palavras "não havia sentimento naquelas lágrimas". O pai, que culpa a discussão no leito de morte pelo falecimento da esposa, não aceita a lamúria e expulsa Candelária do velório, enquanto esbraveja acusações.
Nossa personagem então decide fugir, pegando um ônibus para o mais longe possível, e é por esse motivo que ao longo dos anos, entrar num ônibus durante a noite para chorar por falecidos desconhecidos durante a manhã acabou se tornando uma válvula de escape para abafar os traumas de infância.
Eu não comprei esse bilhete
Através de animações surrealistas (que falaremos mais adiante) e linhas de diálogo muito bem escritas, a história de I Did Not Buy This Ticket começa com Candelária adulta, lamuriando por um morto desconhecido. Após o velório e prestes a realizar uma de suas baldeações, acaba se dando conta de que está na posse de um bilhete de ônibus que não comprou. Um bilhete da linha Eigengrau.
Antes mesmo de tentar aferir razão para o aparecimento sobrenatural do bilhete, a atmosfera do ambiente é alterada, nos abençoando com uma cena agoniante: um ônibus azul, opaco, no centro de uma paisagem que converge à frente de uma lua inquieta. Diante do desaparecimento misterioso do bilhete correto e na pressa de chegar ao seu próximo destino, Candelária aceita embarcar no ônibus sombrio.
A linha eigengrau descrita acima é o palco de transição entre os cenários da obra, aparecendo em momentos inoportunos e sempre trazendo o questionamento da nossa personagem sobre a existência do ônibus e dos motivos pelo qual ele aparece. Durante as baldeações o jogador tem o poder de interpretar e decidir de acordo com suas próprias escolhas os detalhes da história de Candelária, desde o assento no ônibus até os diálogos que afetam diretamente em como ela se relaciona com os traumas gerados pelas memórias póstumas da mãe e da distância que mantém do pai.
Os intermediadores dessa jornada de autoconhecimento e evolução são passageiros horrendos, desfigurados e macabros com quem interagimos, parecendo a qualquer momento que seremos devorados, atacados ou ofendidos da pior maneira possível enquanto descobrimos mais sobre nós mesmos.
Entretanto, o tropo mais gratificante da obra se apresenta logo após os diálogos com as criaturas horripilantes: a fuga para se olhar no espelho do banheiro do ônibus. A espera pelos monólogos que ocorrem nesses momentos causa até mesmo uma certa ansiedade, pois as falas, bem como seu semblante no espelho, são os principais reflexos indicativos da superação (ou não) dos traumas de Candelária no decorrer da visual novel.
É com esse clima de mudança, entendimento e percepção de si próprio, que a narrativa coloca em nossas mãos (quase que literalmente) o destino de Candelária. Não é necessário chegar ao final do jogo para entender que, na verdade, estamos tratando das nossas próprias interpretações e relações com o luto, ausência, e perdão.
REFERÊNCIAS ARTÍSTICAS
Não há hipótese em que possamos deixar de elogiar as artes desenhadas pela Lírio Ninotchka e as linhas de texto escritas de forma impecável pelas mãos de Tiago Rech. A composição dos quadros com isolamentos dos olhos lembram o centralismo das pinturas surrealistas de essência abstrata de Joan Miró, enquanto a paleta de cores e especificamente o contraste com a lua na rodoviária da linha Eigengrau me fazem lembrar, de certa forma, o tratamento que Max Ernst confere aos corpos celestes em suas obras.
EINGENGRAU
Se o nome da linha “Eigengrau” te despertou uma certa estranheza, saiba que ele não foi escolhido à toa. A etimologia do termo é algo que traz ainda mais profundidade para a narrativa de I Did Not Buy This Ticket.
Eigengrau é um termo em alemão que significa “cinza intrínseco”, que se acredita na comunidade científica ter sido popularizado por Gustav Theodor Fechner. De forma resumida, chamamos eigengrau a cor que acreditamos perceber quando mantemos os olhos fechados ou estamos na escuridão mais completa. Usei “acreditamos perceber” justamente porque na ausência de luz, é impossível que identifiquemos qualquer tipo de cor, já que uma cor é a impressão que a luz refletida ou absorvida pelos corpos produz nos nossos olhos.
A percepção da cor “Eigengrau” ou “cinza intrínseco” é considerada um fenômeno gerado pela nossa retina, conexões nervosas com o cérebro, ou apenas um produto da ação cerebral. Não vemos essa cor, mas sim um produto criado pelo nosso próprio cérebro, e à medida que o tempo passa e mantemos os olhos fechados, o cinza gradualmente se torna mais claro ou até mesmo outras percepções de cores podem aparecer.
Diante do caráter subliminar, sobrenatural e subjetivo da experiência provocada em Candelária através da linha Eigengrau, podemos deduzir que, tal como a falsa cor que acreditamos enxergar na escuridão completa, as baldeações realizadas pela nossa personagem não são nada mais do que um fenômeno gerado pela sua própria mente, enquanto está de olhos fechados, dormindo entre um destino e outro. Candelária carregava dentro de si uma vontade estrondosa de enfrentar os monstros do passado, mesmo enquanto fugia deles. Quem nunca teve sonhos ou pesadelos com eventos que nos causam apreensão?
CHORAR OU NÃO CHORAR (CONCLUSÃO)
Se você se lembra da história que contei ao começo, provavelmente vai deduzir quais foram as minhas decisões no decorrer da obra. Consegui enxergar muito da mãe de Candelária no meu falecido (não considerado) avô, e em um exercício simples de alteridade, imagino de onde vieram as lágrimas desta personagem.
Candelária queria ter tido uma mãe, e eu queria ter tido um avô, mas ambos tivemos um carrasco no seu lugar que só trouxe tristeza e amargura.
E se, para mim, a morte não é capaz de tornar ninguém um ser imaculado, logo decidi que Candelária reagiria da mesma maneira. Morrer não é capaz de apagar os erros, santificar, ou fazer com que o passado transmute em algo aprazível, e abraçar essa ideologia muitas vezes resulta em cicatrizes e traumas mais profundos do que podemos imaginar, tal qual Candelária em suas inúmeras baldeações para fugir das dores causadas pelas atitudes de seus pais.
Entretanto, aprendemos a viver e sobreviver na ausência daqueles que deveriam nos dar amor. Como diria Yue Ikari em Neon Genesis Evangelion (1995), “Ora, se tiver vontade de viver, qualquer lugar vira o paraíso”. Mas se o “paraíso” está atrelado a nossa vontade de viver, é natural que no decorrer da vida certos acontecimentos e pessoas tenham o poder de nos fazer pensar que estamos vivendo no verdadeiro inferno. E isso é temporário.
No fim, as grandes lições que colhi em I Did Not Buy This Ticket são que devemos zelar pelos nossos atos em vida, fazendo o bem e tratando o próximo da melhor maneira possível, pois são essas pessoas que terão quem chorem por elas, na mais pura essência da dor que causará a sua ausência.
Da mesma forma, aquele que só plantou desgraças, não sendo "santificado" na morte, também não deve ter o poder de continuar sendo um "fantasma" na vida de quem só semeou angústias. Chorar por raiva ou sentir mágoa diante da injustiça que nos é cometida é natural, mas com o tempo, é necessário lutarmos para que os mortos permaneçam enterrados, pois não temos o poder de mudar o passado, mas sim de escolher como vamos viver o futuro, assim como Candelária lutou com seus próprios traumas dentro de um ônibus imaginário.
Agradecemos gentilmente ao Time Galleon pelo envio de chave para review e aproveitamos para parabenizar o estúdio brasileiro pela premiação de I Did Not Buy This Ticket como "Official Selection" na "LudoNarraCon Showcase 2023".
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Que texto lindo. Parabens, Gabriel! você é brabo!