“Tanto para fazer, tão pouco tempo…”
Quando eu era mais novo e joguei Kingdom Hearts, eu me encontrei em um completo estado de choque. Basicamente, eu passei cerca de umas duas horas no tutorial inicial de Kingdom Hearts. Mas não por não conseguir achar os cogumelos e pedaços de madeira que a Kairi pede ao Sora encontrar para ajudar na construção do barco em Destiny Islands, mas por simplesmente eu não conseguir responder as perguntas iniciais que o jogo se propôs a me perguntar.
A ideia de escolher entre a espada, o escudo e o cajado simplesmente não entrava em minha cabeça. Eu deveria sacrificar um? Eu nunca poderia usar uma magia sequer sacrificando o poder do cajado? Essas perguntas circulavam em minha cabeça e o tempo ia passando.
Apesar do potencial que uma espada destrutiva poderia me oferecer, eu me resguardei a ideia de ser capaz de proteger meus amigos e agarrei o escudo.
A partir de tal momento o meu laço com Sora já estava mais do que demarcado, afinal, entramos juntos nesse profundo vazio assinalado por imensos mosaicos que remetem às princesas de um folclore já conhecido.
“O que é mais importante para mim?”, “Do que eu tenho medo?”, Kingdom Hearts te pergunta isso de maneira extremamente direta, ao mesmo tempo que esses questionamentos são correspondidos com uma indiferença que te fere como flechas no coração.
“Eu fiz algo de errado?” penso comigo mesmo.
Não existe muito bem um carinho ou parabenização por suas escolhas, elas são apenas… escolhas, e não definem em nada a maneira que as pessoas que vivem ao seu redor te enxergam. Esse começo chega a ressoar lá nos primórdios dos RPGs japoneses com Dragon Quest III. Mas, se lá o todo poderoso conversa com você de uma forma quase que casual e tranquilizante, acompanhado de uma relaxante e estonteante cachoeira, Sora em Kingdom Hearts tem consigo mesmo apenas um retrato obtuso que se vocaliza através de sua própria consciência.
Como eu posso me definir através de perguntas que necessitam de respostas tão fragilizadas, no entanto, tão reais? Ser o número um não importa nem um pouco para mim? Realmente é tudo sobre a amizade? A indecisão não me apetece, todavia a ideia do apodrecimento da minha carne conforme os anos passam chacoalha a minha mente. Eu quero ser forte, buscar meus próprios horizontes e avistar belas paisagens, mas afinal, o que realmente importa para mim? Se em Dragon Quest III a entidade te elucida com quase que uma ficha técnica informando qual é sua personalidade, Kingdom Hearts não te propõe respostas ou correspondência alguma em relação a essas perguntas.
Ao final dessa epifania, o terror que vem de sua própria sombra encerra esse momento de reflexão, não há tempo para pensar, uma criatura diabólica, massiva e obscura como a noite te ataca.
“Mas não tema.”
Ao decorrer do tempo em que eu joguei Kingdom Hearts neste ano, essas perguntas ainda circulavam minha cabeça, com uma força exponencial equivalente a que me feriu uma década atrás, e a indecisão continuou a me afrontar. No entanto, eu aprendi algo, eu aprendi a me afirmar como indivíduo, mesmo sem uma certeza absoluta e definitiva, pois nunca serei absoluto e definitivo.
Kingdom Hearts 1 nunca faz questão de explicitar os conflitos internos de Sora, mas em Traverse Town um evento demarca isso. No encontro com Pateta e Donald, ao descobrir ser portador da Keyblade e as decorrências disso, Sora entra em um momento de fragilidade refletindo sua obrigação pessoal de reencontrar Riku e Kairi. O próprio Donald aparenta não demonstrar preocupação alguma com isso, sua missão é exclusivamente encontrar o Rei Mickey.
Mas ele demonstra empatia e faz uma proposta: Sora é permitido a embarcar junto de Pateta e Donald, mas apenas se ele deixar essa feição melancólica em seu rosto de lado. Apenas caso ele pareça engraçado, e que carregue consigo uma face alegre.
Sora então abre um sorriso tenebroso e forçado, e enfim embarca em sua jornada. Aqui não há espaço para a melancolia, não há espaço para remoer as indecisões, mas ela obviamente habita o coração de Sora silenciosamente, e no coração do jogador.
Os monólogos que abordam as relações pessoais do protagonista são limitados a momentos seletos e de extrema importância, mas não há uma ideia de esfregar na sua cara o peso que Sora sente em ter seu mundo fragmentado. E não esse mundo não é Destiny Islands, e sim seus melhores amigos e o mundo pelo qual Sora vive: Kairi e Riku.
Quando Riku enfim reencontra Sora, e o ressentimento permeia o coração de ambos, os diálogos são diretos e focados no ponto de vista de um sobrepujar o outro. Afinal a ideia que Riku tem de Sora ter simplesmente o traído para andar por aí com sua Keyblade e seus novos amigos fere seu coração profundamente.
O curioso é que não existe uma limitação estrutural da época que impediu Kingdom Hearts de explorar o sentimento dos personagens em seu primeiro jogo de maneira mais constante e durante toda a jornada. RPGs dos anos 90 já se permitiam transpor pixels que constituíam diferentes linhas de textos e que abordavam a existência humana em escalas que alcançavam os mais profundos conceitos filosóficos e metafísicos.
Entretanto, em Kingdom Hearts é o simbólico que reina, um simbólico que permeia até sua abordagem mitológica. Se em Final Fantasy a sua mitologia é envolta de criaturas dos folclores e religiões que conviveram com a humanidade como: Shiva, Odin, Ifrit, Behemoth e etc., Kingdom Hearts utiliza do mundinho Disney e do mundo Final Fantasy para materializar tais figuras míticas do nosso consciente coletivo.
As próprias animações de summon, deixam o leão Simba e a fada Sininho a pé de igualdade com figuras como Ramuh e Leviathan. O próprio anjo de uma asa só, Sephiroth, finalmente faz jus a sua alcunha e carrega consigo uma silhueta angelical, todavia, decaída.
Eu vou ser sincero, eu não achava que isso iria funcionar, eu era descrente de tal ideia, até, enfim, ver com meus próprios olhos, e realmente é algo lindo. Afinal, para boa parte das crianças que nasceram entre esse século e o passado, o mundinho Disney se tornou essa espécie de folclore midiático. Não porque veneramos o Pateta como uma criatura a pé de igualdade com deus, mas porque acompanhamos histórias e releituras que se tornaram quase que míticas ao decorrer das décadas, cruzando as gerações de forma cíclica através do conceito que cunhamos a mídia.
Afinal, o coração fala mais alto do que qualquer coisa. A luz e as trevas andam juntos em nossa alma, reinando em uma dissonância harmônica, juntos da insegurança e a força, a espada e o escudo. Sempre que existir uma chave em nosso coração, é porque existe uma porta a ser aberta.
"E no fundo de nossos corações, existe uma luz que nunca se apaga."
Texto editado e revisado por Gabriel Morais de Oliveira.
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